quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Felix Guattari: Os oito "princípios" da esquizoanálise

Felix Guattari: Os oito "princípios" da esquizoanálise
Arquivado em: Esquizoanálise
Escrito por Bernardo Rieux
Qua, 12 de Outubro de 2005 20:30

A esquizoanálise seria um novo culto da máquina? Talvez! Mas não certamente no quadro das relações sociais capitalistas! O progresso monstruoso dos maquinismos de toda natureza, em todos os domínios, e que parece agora dever conduzir a espécie humana para uma inelutável catástrofe, poderia pois, tornar-se a via real de sua liberação. Então, sempre o velho sonho marxista? Sim, até um certo ponto, pois, antes de apreender a história como sendo essencialmente carregada pelas máquinas produtivas e econômicas, penso, ao contrário, que são as máquinas, todas as máquinas que, funcionando à moda da história real ficam, por isso, constantemente abertas aos traços de singularidade e às iniciativas criadoras. Como contestar hoje que apenas uma revolução generalizada poderá, não só melhorar de maneira sensível o modo de vida sobre a terra, mas simplesmente salvar a espécie humana de sua destruição? Trata-se de afrontar tanto os imensos meios de materiais coercitivos como os meios microscópicos de disciplinarização dos pensamentos e dos afetos de militarização das relações humanas. Mesmo que se volte para o Oeste, para o Leste ou para o Sul, a questão fica na mesma: como organizar de outro modo a sociedade. A repressão permanecerá sempre como um dado de base de toda organização social? Porém, nada disso é inelutável, outros agenciamentos sociais, outras conexões maquínicas são concebíveis! Sobre esse ponto, pouco importa se parecemos titubear sobre o marxismo: não há nada a esperar de bom de um retorno às naturezas primeiras (não é por nada que os diversos fascismos não cessam de reclamar sobre elas). Nada mais como solução geral que a menor catarse em pequena escala! Nada pode ser resolvido a não ser pela colocação de agenciamentos altamente diferenciados. Somente deve ficar claro que as máquinas revolucionárias, que mudarão o curso do mundo, não poderão ser efetivadas, e só tomarão uma consistência fazendo-as efetivamente agir, por uma dupla condição:

1) que elas tenham por objeto a destruição das relações de exploração capitalista e o fim da divisão da sociedade em classes, em castas, em raças, etc.

2) que elas se estabeleçam, rompendo com todos os valores fundados sobre uma certa micropolítica do músculo, do phallus, do poder territorializado, etc...

Eis-nos de volta à questão da esquizoanálise! Não se trata, como se vê, de uma nova receita psicológica ou psico-sociológica, mas de uma prática micropolítica que só tomará seu sentido com referência a um gigantesco rizoma de revoluções moleculares, que proliferam a partir de uma multidão de mudanças mutantes: tornar-se mulher, tornar-se criança, tornar-se velho, tornar-se animal, planta, cosmos, tornar-se invisível... - do mesmo modo inventar "máquinas", novas sensibilidades, novas inteligências da existência, numa nova submissão.

Após isso, se eu devesse forçosamente dar como conclusão algumas recomendações de bom senso, algumas regras simples para a direção da análise do inconsciente maquínico, eu proporia os aforismos seguintes que, aliás, poderiam ser aplicados a todos os outros campos, a começar pelo da "grande política":

1 - "Não impedir". Em outras palavras, não acrescentar ou retirar. Ficar, justamente, na adjacência da mudança em curso e extinguir-se tão logo possível (não se trata aqui, pois, de curas que se arrastam durante anos, até dezenas de anos como é a moda atual para a psicanálise!).

2 - "Quando acontece alguma coisa, isso prova que acontece alguma coisa". Tautologia fundamental para marcar aí, igualmente, uma diferença essencial com a psicanálise cujo princípio de base quer dizer que: "quando não acontece nada, isso prova que acontece, na realidade, alguma coisa no inconsciente"; princípio que seve para o psicanalista justificar sua política do silêncio e das esperas indefinidas. Na verdade, é pouco frequente que aconteça verdadeiramente alguma coisa nos agenciamentos do desejo! Convém, também, guardar todo seu relevo para tais acontecimentos e toda sua vitalidade para os componentes de passagem que são a manifestação desses acontecimentos. Os psicanalistas queriam que nós acreditássemos que eles estão em relação constante com o inconsciente, que dispõem de uma ligação privilegiada que os reúne a ele, uma espécie de telefone vermelho, como o de Carter e de Brejnev! O despertar do inconsciente sabe se fazer compreender por ele próprio. O desejo inconsciente, os agenciamentos que não se exprimem pelos sistemas dominantes de semiotização, manifesta-se por outros meios que não enganam. Aqui não se precisa de porta-voz, de intérpretes. Que mistificação é essa de pretender que o inconsciente trabalhe em segredo, que não se possa dispensar um certo tipo de detetive para decifrar suas mensagens e, sobretudo, afirmar que ele está sempre vivo, latente, repelido, quando na verdade ele estaria visivelmente entorpecido, esgotado, morto, e que não haveria mais outro recurso a não ser o de reconstruí-lo, algumas vezes partindo quase do zero? Que alívio, um pouco fraco, como o de encontrar alguém que lhe dê crédito, contra toda aparência, de uma riqueza inconsciente, inesgotável, enquanto tudo ao seu redor - a sociedade, a família, sua própria resignação - parece ter conspirado para exauri-lo de todo desejo, de toda esperança de mudar sua vida! um tal serviço não tem preço e compreende-se por que os psicanalistas cobram tão caro! (1)

3 - A melhor posição para se ouvir o inconsciente não consiste necessariamente em ficar sentado atrás de um divã.

4 - "O inconsciente compromete aqueles que dele se aproximam". Sabemos que "acontece alguma coisa", quando o agenciamento esquizoanalítico atualiza uma "matéria de opção"; torna-se então impossível ficar neutro, pois esta matéria de opção arrasta, no seu sulco, todos aqueles que encontra.

5 - "As coisas importantes não acontecem nunca onde nós as esperamos". Outra formulação do mesmo princípio: "A porta de entrada não coincide com a porta de saída". Ou ainda: "As matérias dos componentes incitando uma mudança não são geralmente da mesma natureza que aquelas dos componentes que efetuam essa mudança". (Exemplo: a palavra se converterá em somático, ou somático em econômico, ou em ecológico, enquanto que o ecológico se converterá em palavra ou em acontecimentos sócio-históricos, etc., etc.) A riqueza de um processo esquizoanalítico medir-se-á pela variedade e pelo grau de heterogeneidade dessas espécies de transferir rizômicos de maneira que nenhuma espécie de semiologia significante, de hermenêutica universal ou de programação política pretenderá traduzi-los, pô-los em equivalência, os teleguiar para daí, finalmente, extrair um elemento comum facilmente explorável pelos sistemas capitalistas. Um significante não representa decididamente a subjetividade esquizo-analítica para um outro significante! Como os componentes não conseguem organizar seus próprios núcleos maquínicos e seus próprios agenciamentos de enunciação, rebelam-se diante da pretensão dos significantes dominantes para interpretá-los. E, em seguida, são eles que fagocitam o componente significante (O que, é preciso repetir, não é de maneira alguma sinônimo de um primado sistemático dos componentes não-verbais "diante do tempo das máquinas!").

6 - Visto que na passagem tratou-se de transfer, penso que estaríamos bem advertidos para distinguir em todas circunstâncias:

- os transfers por ressonância subjetiva, por identificação pessoal, pelo eco do buraco negro;

- transfers maquínicos (máquinas-transfers) que procedem aquém do significante e das pessoas globais, por interações diagramáticas e a-significantes, e que produzem novos agenciamentos antes de representar e transmitir indefinidamente antigas estratificações.

7 - "Nunca nada é adquirido". Nenhum estádio, nenhum complexo nunca é transposto, nunca é ultrapassado. Tudo permanece sempre plano, disponível a todos os reempregos mas também a todas as derrocadas. Um buraco negro pode ocultar um outro! Nenhum objeto pode ser afetado por uma identidade fixa; nenhuma situação é garantida. Tudo é assunto de consistência, de agenciamento e de reagenciamento. A publicação de uma consistência simbólica garantida cem por cento ("como você venceu seu complexo de castração?") é uma operação desonesta e perigosa. Sobretudo da parte das pessoas que pretendem tê-lo adquirido, eles próprios, no decorrer de uma análise tida como didática!

8 - Finalmente, mas na realidade, o primeiro princípio: "toda idéia de princípio deve ser mantida como suspeita". A elaboração teórica é tanto mais necessária e deverá ser tanto mais audaciosa quanto o for o agenciamento esquizoanalítico que admitiu a medida de seu caráter como essencialmente precária.

(1) Poder-se-ia transpor, palavra por palavra, o que nós dissemos aqui do psicanalista ao militante profissional, a quem caberia "fazer existir " a classe trabalhadora como motor-da-história, mesmo quando ela estivesse deprimida, relaxada, cúmplice da ordem dominante - como em certos baluartes do capitalismo - ou, melhor ainda, quando ela não existe praticamente no local, como é o caso em numerosos países do tercerio mundo.

Bibliografia:

GUATTARI, F. O Inconsciente Maquínico - Ensaios de Esquizoanálise. Campinas: Papirus, 1988 (p. 187-191)

Fonte do texto: 

Fonte da imagem: fgbbh.org.br 

1 comentários:

Jorge Bichuetti - Utopia Ativa disse...

Tânia, um belo trabalho e uma construção de potência: guattari com os 8 princípios que nos liberam para inventar o cuidado, o agir, o pensar e os encontros, e sobre a sociedade de espetáculo, um texto magnífico, claro, envolvente...
Espalhemos culturartevida...
Beijos, Jorge