sábado, 28 de maio de 2011

Entrevista com a Professora Amanda Gurgel para o jornal O Globo.



"Todos sabem como é a rotina de um professor", 
diz professora Amanda Gurgel

por: Paulo Francisco

A senhora esperava toda essa repercussão, no YouTube, com seu depoimento sobre a situação da educação?

AMANDA GURGEL DE FREITAS: Nunca. Eu jamais imaginei que uma situação, que para mim é tão corriqueira e tão óbvia para todo mundo, pudesse ter uma abrangência tão grande. Não tem quem não veja como é a rotina de um professor.

O que a senhora acha que está faltando para mudar a situação do professor?

AMANDA: Posso falar sinceramente: vergonha. Esse caos que existe na educação não é um caos desorganizado, entre aspas, é um caos preparado, existe uma intenção para que a educação funcione desse jeito, para que os filhos da classe trabalhadora jamais atinjam altos níveis de cultura, para que no máximo eles aprendam um ofício.

A senhora hoje tem dois empregos, acorda às 5h da manha e passa o dia todo trabalhando. Como é a vida de um professor sem condições até de se qualificar, de ler? Como faz para se atualizar?

AMANDA: Olha, é muito difícil. Para qualquer professor, isso é muito difícil. Então, na nossa categoria, até é importante tocar nesse ponto, nós vivemos uma certa crise de identidade, porque enquanto a nossa atividade sempre foi considerada intelectual, e ainda hoje leva esse nome de uma atividade intelectual, de formadores de opinião, a verdade é que nós estamos passando por um processo de proletarização, que está se acentuando a cada dia. E a nossa atividade é principalmente manter o aluno em sala de aula, independente de qualquer coisa. Por isso que muitas vezes as pessoas confundem os responsáveis pelo caos e acham que a greve atrapalha os alunos. Na verdade, a greve não atrapalha, justamente por isso, se nós não estivéssemos em greve não teríamos a oportunidade de falar sobre a educação nesse momento, porque estariam todos os alunos dentro da sala de aula controlados pelos professores, que não estariam em condições de ter uma atividade digna, de exercer a atividade docente decentemente, porque as salas são superlotadas, porque as salas são quentes aqui na nossa cidade, porque os professores não têm condições de se atualizarem. Infelizmente, não é dada essa oportunidade para os professores.

A senhora disse que o professor sofre muito de doenças psicossomáticas. A senhora já teve depressão. Como é a saúde dos professores?

AMANDA: Os professores são submetidos a uma jornada de trabalho que é extenuante, sem ter condições de trabalho dígnas. Frequentemente desenvolvem doenças relacionadas à atividade profissional e, em troca, recebem por parte dos governos mais uma forma de opressão, que é impedí-los de darem entrada em licenças médicas ou em readaptação de função. Recentemente, em um consultório, um médico disse que não poderia fornecer um laudo para encaminhar um paciente a uma junta médica porque hoje em dia professor e policial são todos assim, querem ganhar dinheiro sem trabalhar. Dentro do consultório médico ele defendeu a política do governo do estado, dizendo que o governo está muito certo mesmo. Independente do seu estado de saúde, o professor tem mais é que estar em sala de aula. Isso só reforça essa ideia que para o governo educação de qualidade é aluno controlado dentro de sala de aula, independente da condição dessa aula e das condições de saúde do trabalhador.

Depois do sucesso na internet, a senhora pretende se candidatar a algum cargo político?

AMANDA: Nunca pensei sobre isso, não pretendo no momento. Talvez as pessoas possam achar que eu fiz isso por interesse. Mas minha militância é pelas demandas da nossa categoria e não gostaria que fossem confundidas com as do partido. Não tenho pretensão política governamental, mas faço política no meu dia a dia. As pessoas que me conhecem sabem de minha atuação. Talvez em outros momentos a conjuntura possa me levar para outros rumos.


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De onde foi retirada a entrevista acima:

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Colóquio Deleuze e Guattari

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terça-feira, 24 de maio de 2011

Chomsky e as 10 Estratégias de Manipulação Midiática

Charge Eugenio Neves

O linguista estadunidense Noam Chomsky elaborou a lista das “10 estratégias de manipulação” através da mídia:

1- A ESTRATÉGIA DA DISTRAÇÃO.

O elemento primordial do controle social é a estratégia da distração que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças decididas pelas elites políticas e econômicas, mediante a técnica do dilúvio ou inundações de contínuas distrações e de informações insignificantes. A estratégia da distração é igualmente indispensável para impedir ao público de interessar-se pelos conhecimentos essenciais, na área da ciência, da economia, da psicologia, da neurobiologia e da cibernética. “Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real. Manter o público ocupado, ocupado, ocupado, sem nenhum tempo para pensar; de volta à granja como os outros animais (citação do texto ‘Armas silenciosas para guerras tranqüilas’)”.

2- CRIAR PROBLEMAS, DEPOIS OFERECER SOLUÇÕES.

Este método também é chamado “problema-reação-solução”. Cria-se um problema, uma “situação” prevista para causar certa reação no público, a fim de que este seja o mandante das medidas que se deseja fazer aceitar. Por exemplo: deixar que se desenvolva ou se intensifique a violência urbana, ou organizar atentados sangrentos, a fim de que o público seja o mandante de leis de segurança e políticas em prejuízo da liberdade. Ou também: criar uma crise econômica para fazer aceitar como um mal necessário o retrocesso dos direitos sociais e o desmantelamento dos serviços públicos.

3- A ESTRATÉGIA DA GRADAÇÃO.

Para fazer com que se aceite uma medida inaceitável, basta aplicá-la gradativamente, a conta-gotas, por anos consecutivos. É dessa maneira que condições socioeconômicas radicalmente novas (neoliberalismo) foram impostas durante as décadas de 1980 e 1990: Estado mínimo, privatizações, precariedade, flexibilidade, desemprego em massa, salários que já não asseguram ingressos decentes, tantas mudanças que haveriam provocado uma revolução se tivessem sido aplicadas de uma só vez.

4- A ESTRATÉGIA DO DEFERIDO.

Outra maneira de se fazer aceitar uma decisão impopular é a de apresentá-la como sendo “dolorosa e necessária”, obtendo a aceitação pública, no momento, para uma aplicação futura. É mais fácil aceitar um sacrifício futuro do que um sacrifício imediato. Primeiro, porque o esforço não é empregado imediatamente. Em seguida, porque o público, a massa, tem sempre a tendência a esperar ingenuamente que “tudo irá melhorar amanhã” e que o sacrifício exigido poderá ser evitado. Isto dá mais tempo ao público para acostumar-se com a idéia de mudança e de aceitá-la com resignação quando chegue o momento.

5- DIRIGIR-SE AO PÚBLICO COMO CRIANÇAS DE BAIXA IDADE.

A maioria da publicidade dirigida ao grande público utiliza discurso, argumentos, personagens e entonação particularmente infantis, muitas vezes próximos à debilidade, como se o espectador fosse um menino de baixa idade ou um deficiente mental. Quanto mais se intente buscar enganar ao espectador, mais se tende a adotar um tom infantilizante. Por quê? “Se você se dirige a uma pessoa como se ela tivesse a idade de 12 anos ou menos, então, em razão da sugestão, ela tenderá, com certa probabilidade, a uma resposta ou reação também desprovida de um sentido crítico como a de uma pessoa de 12 anos ou menos de idade (ver “Armas silenciosas para guerras tranqüilas”)”.

6- UTILIZAR O ASPECTO EMOCIONAL MUITO MAIS DO QUE A REFLEXÃO.

Fazer uso do aspecto emocional é uma técnica clássica para causar um curto circuito na análise racional, e por fim ao sentido critico dos indivíduos. Além do mais, a utilização do registro emocional permite abrir a porta de acesso ao inconsciente para implantar ou enxertar idéias, desejos, medos e temores, compulsões, ou induzir comportamentos…

7- MANTER O PÚBLICO NA IGNORÂNCIA E NA MEDIOCRIDADE.

Fazer com que o público seja incapaz de compreender as tecnologias e os métodos utilizados para seu controle e sua escravidão. “A qualidade da educação dada às classes sociais inferiores deve ser a mais pobre e medíocre possível, de forma que a distância da ignorância que paira entre as classes inferiores às classes sociais superiores seja e permaneça impossível para o alcance das classes inferiores (ver ‘Armas silenciosas para guerras tranqüilas’)”.

8- ESTIMULAR O PÚBLICO A SER COMPLACENTE NA MEDIOCRIDADE.

Promover ao público a achar que é moda o fato de ser estúpido, vulgar e inculto…

9- REFORÇAR A REVOLTA PELA AUTOCULPABILIDADE.

Fazer o indivíduo acreditar que é somente ele o culpado pela sua própria desgraça, por causa da insuficiência de sua inteligência, de suas capacidades, ou de seus esforços. Assim, ao invés de rebelar-se contra o sistema econômico, o indivíduo se auto-desvalida e culpa-se, o que gera um estado depressivo do qual um dos seus efeitos é a inibição da sua ação. E, sem ação, não há revolução!

10- CONHECER MELHOR OS INDIVÍDUOS DO QUE ELES MESMOS SE CONHECEM.

No transcorrer dos últimos 50 anos, os avanços acelerados da ciência têm gerado crescente brecha entre os conhecimentos do público e aquelas possuídas e utilizadas pelas elites dominantes. Graças à biologia, à neurobiologia e à psicologia aplicada, o “sistema” tem desfrutado de um conhecimento avançado do ser humano, tanto de forma física como psicologicamente. O sistema tem conseguido conhecer melhor o indivíduo comum do que ele mesmo conhece a si mesmo. Isto significa que, na maioria dos casos, o sistema exerce um controle maior e um grande poder sobre os indivíduos do que os indivíduos a si mesmos.

Fonte: Blog do CEA

sábado, 21 de maio de 2011

Discurso da profª Amanda Gurgel. Perfeito!

Eu, como professora do Magistério Estadual do RS, endosso e assino embaixo das palavras proferidas pela profª. Amanda Gurgel. O seu discurso igualmente atinge a todos os professores da rede estadual do RS. Solidarizamo-nos e compartilhamos suas falas, numa tentativa de nossa voz ser apenas uma em face ao que enfrentamos em nossa categoria profissional no Brasil. Parabéns professora Amanda Gurgel, por tão bem estar representando a todos nós, trabalhadores em educação, em um país onde as prioridades estão na lata do lixo.

Tânia Marques 21 de maio de 2011

sábado, 14 de maio de 2011

CURA E LIBERTAÇÃO: DO MÍSTICO À ESQUIZOANÁLISE

Jorge Bichuetti

Mortificados pelo corpo que vê corpo danificado no capitalismo e na sociedade mundial de controle, pensamos nos caminhos da libertação: cura-emancipação; cura-vida e homem novo; cura-devir... Aqui, hoje, refletiremos sobre contribuições que nos chegam das lições que brotaram no solo da transformação da psiquiatria asilar para novos modos de cuidar. Baremblitt diz que "psicótico é alguém que renunciou o mundo de vendedores e vencedores". Neste mesmo sentido, alerta-nos Michel Foucault que vivemos a ditadura da felicidade, da juventude, da beleza e da vitória... Ambos, nos indicam,  claramente, que as pressões normativas do mercado e da ideologia dominante nos obrigam e nos forçam corpos vulneráveis, que se realizam e se frustram nas teias da acumulação e da competição.
O processo de acumulação de riquezas, o mundo dos vendedores, permanece no espectro do fetichismo, da mercadoria. Os bens perdem o valor de uso e são subsumidos pelo valor de troca; e nossas vidas, coisificadas: coisificadas na venda e no processo alienado de trabalho e coisificada pela substituição do valor do ser humano, dado pela sua história de vida para uma vida que vale os objetos que a abona como vida de valor.
Um processo de desumanização...
Desumanização que se aprofunda na ditadura, percebido por Foucault. A vida é paradoxo... Alegria e dor, vitória e derrota; esperança e desalento.A beleza-padrão é uma estigmatização excludente da estética singularizante. A juventude é só uma das fases e faces da vida...
Assim, o nosso corpo não pode desvendar suas potências... Ele vive sucateado e pressionado, diuturnamente, para ser um corpo-robô... Cópia vitoriosa dada pelo mundo. Adoecemos com uma nova expropriação: roubaram nossa humanidade... O corpo fala, resiste, evita, foge... Ele não se suporta experenciar a dureza robótica que o anula como corpo-vida, vida peregrina que se inventa e se constrói no entrevero de quedas e vitórias, risos e lágrimas... Não sendo a perfeição dos vencedores e vendedores, nosso corpo escapa... e como o mundo vem subtraindo do cotidiano escapes produtivos, definhamos... Adoecemos...
Sartre com a ideia do inacabamento, do homem-projeto, conjunto de tarefas, obra em construção nos potencializa para a cura-libertação... Nos ressintoniza com o âmago da vida.
Voltando a Nietzsche, anotamos que o que belo no homem é que ele é uma passagem entre o animal e o além-do-homem; e grandioso, é que ele é um passar e um sucumbir...
Não existe possibilidade de cura-libertação, longe do resgate da nossa humanidade... Vida que experiencia, tenta, equivoca, acerta, escolhe... No universo da nossa capacidade de escolher, optar, reintroduzimos a nossa vida de potência... Porquanto, na opção restaura-se o espaço da singularidade e esvazia-se a uniformização patogênica e patogenizante...
Cura-libertação é caminho de ruptura com o mercantilismo, com a deificação do dinheiro, com o consumismo, com a escravidão a um padrão de vida - juventude viril, bruta e violenta, de vitórias e massacres, de beleza para o espetáculo, de liquidez existencial...
Consequentemente, cura-libertação emerge na potência do ser humano que se assume singularidade e desejo, sonho e opção... Vida que se inventa no perambular dos caminhos...

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Entrevista a Eduardo Pavlovsky - Elsigma

-El Psicodrama, en la Argentina, lo considera pionero. ¿Cómo surgió su interés por el campo grupal, y, sobre todo, por aplicar el psicoanálisis en él?

-Mi interés por lo grupal surgió un poco casualmente, como muchas cosas en mi vida. Me recibí de médico siendo muy joven, a los veintidós años, y a los veintitrés, entré en la Asociación Psicoanalítica. Ahora creo que fue un error, porque me parece que para ser psicoanalista hay que tener una cierta madurez y experiencia, y te la dan los años, la existencia misma. Era el más joven de todos, y estudiaba, trabajaba con algunos pacientes, sobre todo jóvenes. Pero un día, por casualidad, un colombiano, Rojas Bermúdez, me preguntó si quería hacer una experiencia de grupo con niños en un hospital. Yo le dije: ‘no sé qué es esto de grupo con niños’. Y entonces, él me respondió: ‘eso es lo bueno, te va a interesar mucho’. La verdad es que yo estaba bastante desilusionado de las clases de Psicoanálisis, me parecía que el psicoanálisis era tomado como una sociedad cerrada y secreta (estoy hablando del año 1958, en la Asociación Psicoanalítica Argentina), con un alto nivel de religiosidad en las ideas, entendiendo por religiosidad ‘la adscripción a cuerpos teóricos, científicos e ideológicos’. Se me ocurre un ejemplo muy sencillo: a veces cuando uno está en un lugar determinado dice ‘me gustaría actuar como Al Pacino o pintar como Alonso’, y a mí, no me interesaba el tipo de vida que llevaban ellos y estaba muy relacionado con lo que allí se hacía. Teóricamente, el Psicoanálisis funcionaba como una weltanschauung, como una comprensión del mundo. Retomando lo anterior, me incorporé en el hospital de niños en un Servicio de Psicopatología nuevo, y me encontré allí con chicos a los que había que agrupar, de una u otra manera, porque no se podía hacer psicoanálisis individual. Entonces empecé a atenderlos en grupo, sin tener idea de lo que era, sobre la base de los conocimientos analíticos que tenía, tomando algunos esquemas interesantes, como la transferencia, la resistencia, la interpretación. De entrada, me di cuenta de que era una cosa muy apasionante, yo estaba entrenado para estar quieto, pero allí había un grupo de niños jugando, en movimiento. Esto fue para mí una verdadera conmoción, porque aparecían aspectos desconocidos, que no tenían lugar en el encuadre psicoanalítico, y yo, en ese momento, estudiaba psicoanálisis, iba a supervisión, era un alumno del psicoanálisis. Pero el grupo me daba un lugar de exploración, me sentía como alguien que entra en un lugar nuevo, creativo. En esa época, no había grupos de niños en Buenos Aires; había grupos, sí, estaba Tahier en el hospital Británico, Salas en otro lugar, eran dos o tres los que trabajaban con grupos, pero no había algo escrito. Hacer psicoanálisis era fácil, porque tenías a tu disposición todo un cuerpo teórico, que en psicoterapia de niños no había. Y nosotros empezamos a trabajar con mucho entusiasmo, atendíamos varios grupos (Rojas Bermúdez, Martínez, María Rosa Glasserman, Fidel Moccio y yo) y nos supervisábamos entre nosotros. Hacíamos rol playing, por ejemplo: en tal grupo, ¿qué decís?, no teníamos mucha idea. Lo que sabíamos era que había una mejoría, porque hacíamos grupos de madres, y los niños mejoraban a través de las dos sesiones semanales de grupo. Ahí el esquema referencial era el psicoanálisis y la psicoterapia de grupo. Después, yo atendí niños muy graves, mandados por algunos neurólogos del hospital, chicos epilépticos. Daba la casualidad que el neurólogo, que trabajaba allí, había hecho él mismo psicoterapia de grupo, y le parecía que un grupo de niños podía ser muy interesante. Nosotros éramos pioneros, fuertes en personalidad, y entonces continuábamos con mucho interés este emprendimiento. Fuimos a un Congreso Internacional en Londres en el 64, llevando nuestra experiencia. Simultáneamente, los niños empezaron a jugar, y esto nos dio una matriz interesante, porque si hay algo que un psicoanalista no sabe, es jugar, es una de las cosas más difíciles del mundo, uno en general está sentado, escuchando. Esta experiencia nos introdujo en el mundo del juego, y ellos aprendieron a jugar. ¿Qué es jugar?, tomar roles, ‘vamos a jugar al vigi-ladrón’. Ellos nos adjudicaban a nosotros roles por los cuales teníamos que jugar también. Estamos hablando del año 58 o 59, estoy haciendo una síntesis. De ahí, pasamos al Hospital de Clínicas (en el 61, 62) donde ya estaba todo más sistematizado. Luego fuimos a Nueva York a ver a Moreno, que era el creador del Psicodrama, en el 62 creo o 63. Él era un médico sefardí muy culto, que no tenía ninguna simpatía por el psicoanálisis, pero nos veía, a Rojas y a mí, como punta de entrada del Psicodrama en Latinoamérica. Sabía que éramos analistas, pero que, al mismo tiempo, estábamos muy interesados en lo dramático. Entonces nos quedamos allí un tiempo, haciendo entrenamiento dramático con Moreno, y luego, cuando volvimos a la Argentina, fundamos la Asociación Argentina de Psicodrama, en el 63. Leia mais aqui.

Fonte de referência para este post: http://deleuzefilosofia.blogspot.com/

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Escola Nômade de Filosofia - Mil Platôs e Esquizoanálize - Micropolítica e uso dos afetos

Gilles Deleuze e Felix Guattari por Luiz Fuganti





Visite o site: Escola Nômade de Filosofia 
                     http://escolanomade.org/

sexta-feira, 6 de maio de 2011

A cada corpo a sua própria face: notas sobre a "Lei da Burqa"

Fonte e autoria deste post:  
A Navalha de Dalí, blog do meu amigo Murilo Duarte Costa Corrêa

« Si vous êtes pris dans le rêve de l’autre, vous êtes foutu ».
Gilles Deleuze

Certa vez, Gilles Deleuze disse: “Se você ficar preso no sonho do outro, você está fodido”. As palavras do filósofo francês aplicam-se, ainda hoje, às mulheres muçulmanas, mas também a nós mesmos. Há, sem dúvida, debates extremamente relevantes acerca do projeto de lei que proíbe a dissimulação do rosto no espaço público francês; dentre os argumentos favoráveis e contrários à proibição, uma ampla gama de razões encontra um de seus extremos na liberdade religiosa, por vezes nos discursos de tolerância - contrários àquilo que se pode crer ser uma medida legal xenófoba -, e chega, em outro extremo, a discursos que compreendem o projeto legal pelo viés feminista, liberatório, concessor do espaço público ao rosto feminino etc. Entre esses dois extremos, argumentos que vão dos direitos humanos (liberdade religiosa, igualdade feminina e direito de se vestir) ao multiculturalismo.
Todos esses argumentos – absolutamente válidos – já foram explicitados em diversas ocasiões desde o dia 13 de julho. Por serem exemplares, cito os textos de Raphael Neves, Hugo Albuquerque, André Egg, Sergio Leo e Raphael Garcia. Sem dúvida, há outros; cito os cinco porque os li, e porque os creio exemplares de alguns argumentos dessa série que tento alinhar sob um mesmo continuum.
*
Não, eu não sou contra; não, eu não sou a favor. Não, eu não sou indiferente. Em primeiro lugar, não se trata de um projeto que simplesmente proíbe a utilização de Burqa ou Niqab por mulheres, e não vai liberá-las definitivamente deles. Trata-se de « Projet de loi interdisant la dissimulation du visage dans l’espace public », i.e., projeto de lei que proíbe a ocultação da face no espaço público francês. Por isso, o artigo 1º do texto legal afirma: « Nul ne peut, dans l’espace public, porter une tenue destinée à dissimuler son visage ». O dispositivo proíbe a todos (“Nul ne peut”) de se vestirem de maneira a ocultar a face no espaço público (com exceções durante o Carnaval, por exemplo, o que, por si, já faz a regra fazer eco à exceção). O projeto de lei em questão tem uma intenção manifesta, expressa em sua exposição de motivos:
La pratique de la dissimulation du visage qui peut au surplus être dans certaines circonstances un danger pour la sécurité publique, n’a donc pas sa place sur le territoire de la République. L’inaction des pouvoirs publics témoignerait d’un renoncement inacceptable à défendre les principes qui fondent notre pacte républicain. (Trad. livre: “A prática de ocultação da face que, em excesso e em certas circunstâncias, pode ser um perigo para a segurança pública, não tem lugar no território da República. A inação dos poderes públicos testemunharia uma renúncia inaceitável em defender os princípios que fundam nosso pacto republicano”.)
Outro dispositivo que creio ser digno de nota é o do artigo 4º do projeto, que criminaliza a ocultação forçada da face, e inclui o artigo 225-4-10 no Código Penal Francês com a seguinte redação:
« Après la section 1 bis du chapitre V du titre II du livre II du code pénal, il est inséré une section 1 ter ainsi rédigée :


« Section 1 ter


« De la dissimulation forcée du visage


Art. 225-4-10. – Le fait pour toute personne d’imposer à une ou plusieurs autres personnes de dissimuler leur visage par menace, violence, contrainte, abus d’autorité ou abus de pouvoir, en raison de leur sexe, est puni d’un an d’emprisonnement et de 30 000 € d’amende.


« Lorsque le fait est commis au préjudice d’un mineur, les peines sont portées à deux ans d’emprisonnement et à 60 000 € d’amende. »
O tipo incrimina o fato de « impor » a uma ou mais pessoas a ocultação da face mediante ameaça, violência, constrição, abuso de autoridade ou poder, em razão do sexo, e comina pena de privação de liberdade com duração de um ano e multa de trinta mil euros. As penas de encarceramento e multa são dobradas no caso de a conduta descrita no tipo ser cometida contra menor de idade. Fosse o caso de proteger as mulheres, bastaria esse dispositivo; mas a lei vai muito além de suas boas intenções.
*
O primeiro país europeu a editar uma medida semelhante foi a Bélgica. Lá, a lei foi concebida como uma simples positivação legislativa dos diversos regulamentos de polícia que já vigiam em quase todas as comunas belgas e que vedavam, “por razões de ordem pública”, circular em vias públicas com o rosto encoberto.[i]
Na lei belga, como no projeto francês, não há menção explícita ao véu islâmico; tampouco ao rosto feminino, a não ser indiretamente, no tipo penal inserido no artigo 4º que cria o artigo 225-4-10 do Código Penal Francês, quando alude a “em razão do sexo". A questão toca, efetivamente, à peculiar condição das mulheres muçulmanas em país estrangeiro, mas os efeitos práticos, políticos e jurídicos de seu artigo 1º, especialmente, atingem a totalidade dos cidadãos. As leis não têm, via de regra, destinatários específicos, não são atos normativos concretos. Tanto a lei belga como o projeto francês interditam puramente a ocultação da face com o uso de vestimentas no espaço público; nada mais.
Todo argumento que discute a atual pertinência do texto legal tem por horizonte interpretativo esse núcleo histórico e circunstancial de produção da norma. No entanto – como se aprende nos primeiros anos de direito –, as normas são editadas a fim de vigorarem pro futuro e indefinidamente, de modo geral e abstrato, independentemente da intenção legislativa original.
Não se trata de desqualificar a discussão sobre a condição feminina, especialmente das mulheres que comungam da religião muçulmana, nem de invalidar a priori os debates sobre a tensão entre universalidade dos direitos humanos e multiculturalismo. Essas são importantes frentes de análise, mas não parecem engendrar questões capazes de esgotar o problema político e jurídico que uma lei, como a da interdição da ocultação da face, coloca - especialmente nas sociedades de controle.
O projeto francês, ou a lei belga, não devem ser encarados apenas como atentados a liberdades individuais, ou como iniciativas intensamente liberatórias; é igualmente impróprio chamar “Lei da Burqa” a uma lei que continua e intensifica uma estratégia governamental que controla o rosto humano com base na expropriação de sua experiência política.
Essa lei pode e deve ser vista como dispositivo governamental; como tal, discutir sua benevolência ou maldade intrínsecas nos desarma para compreender o que está realmente em jogo: a interdição do acesso ao rosto. Tanto o comando “cubra” quanto o comando “descubra”, oriundos de fontes heterogêneas - é certo -, partem do mesmo princípio: usar a lei (divina ou humana) para realizar um controle político do rosto.
Tomemos Foucault e sua “Microfísica”: os poderes circulam, estão disseminados em todos os níveis da sociedade, não são apenas verticais, mas horizontais, transversais etc. Tomemos Agamben – especialmente como leitor de Foucault e Tiqqun: o corpo a corpo com os dispositivos governamentais de todo tipo, disseminados no corpus social, produz um complexo subjetivações-dessubjetivações. E “poder” é isso: um dispositivo (que pode apresentar-se como uma vestimenta ou uma lei) que subjetiva-dessubjetiva (produz um sujeito). A lei que proíbe a ocultação da face subtrai a possibilidade ao mesmo tempo ontológica e política de apropriar-se do próprio ser na aparência exposta; interdita, enfim, apropriar-se do próprio rosto, “o lugar da comunidade, a única cidade possível”, como escreveu Giorgio Agamben.
O rosto, porém, não coincide com a face. A face é mera exposição; o rosto, a exposição e a possibilidade de apropriar-se de sua impropriedade – seu próprio ser exposto que, todavia, não o pertence como essência ou atributo. Apenas na medida em que estamos no aberto e podemos apropriar-nos de nosso próprio ser exposto é que a exposição pode ser o lugar da política. Quando um dispositivo, seja um tecido opaco ou uma lei transparente, comandam “cubra-se” ou “descubra-se”, vive-se como impotência prática e política a destruição da experiência dessa apropriação; o rosto torna-se sagrado, intocável.
Por isso, em 1996, Agamben escrevia em Mezzi senza fine que:

A verdade, o rosto, a exposição, constituem, hoje, objeto de uma guerra civil planetária, cujo campo de batalha é toda a vida social, cujas tropas são os media, cujas vítimas são todos os povos da terra. Políticos, mediocratas e publicitários compreenderam o caráter insubstancial do rosto e da comunidade que ele abre, e transformam-no em um segredo miserável cujo controle se trata de assegurar a todo custo. O poder dos Estados não é mais fundado, hoje, sobre o monopólio do uso legítimo da violência (que eles compartilham sempre mais de bom grado com outras organizações não-soberanas – ONU, organizações terroristas), mas, sobretudo, sobre o controle da aparência (da doxa).[ii]

O projeto francês e a lei belga originam-se de dispositivos de segurança que se apóiam em estratégias de controle político do rosto, e são enformados por um princípio de identificação radical: a exposição do rosto no espaço público (que sempre foi constitutiva da política) deixa de ser uma experiência comunitária, de simultaneidade de semblantes e “foras” apropriados unicamente sob o signo do inapropriável pelo próprio homem, para se tornar a aberta claridade em que jamais um homem será capaz de esconder-se. A comunidade é rarefeita, os semblantes, partidos, desfigurados e reduzidos a face e a princípio de identificação.
A cada corpo atribui-se, tão-somente, a sua própria face. O rosto, como a política, permanecem estilhaçados, interditados, expropriados, incompossíveis com o espaço público. O rosto torna-se um objeto privilegiado de controle por meio dos mais heterogêneos dispositivos governamentais, desde os familiares, religiosos, morais, como a Burqa, ou o Niqab, às leis que interditam a ocultação da face. Não há – é sempre bom lembrar – dispositivos governamentais, ou subjetivações, liberadores. Quando, por obra dos dispositivos, os devires permanecem separados daquilo que eles podem, é nosso, e alheio, o rosto aprisionado no sonho do outro.

[i] Nesse sentido, confira-se o artigo saído sobre a lei belga em 29.04 no jornal italiano La Reppublica: “Belgio, divieto assoluto di Burqa. Primo paese a bandilo in Europa”., especialmente a seguinte passagem: “Si tratta di una decisione il cui valore è quasi puramente simbolico. L'uso del velo integrale è poco diffuso in Belgio, dove la comunità musulmana è principalmente di origine turca o magrebina. Inoltre in quasi tutti i comuni sono già in vigore regolamenti di polizia che vietano, per motivi di ordine pubblico, di circolare per strada con il volto coperto. Nella sola regione di Bruxelles l'anno scorso la polizia ha contestato 29 contravvenzioni al regolamento.”
[ii] “O rosto”, texto de Agamben, foi traduzido ao português e pode ser lido aqui.

Subtrações: sexo, corpo, experiência


Coluna mensal de Murilo Duarte Costa Corrêa n'O Pensador Selvagem
Editor do blog de Filosofia e Teoria do Direito A Navalha de Dalí

1. Se retornássemos ao período vitoriano, em meados do século XIX, veríamos, como Michel Foucault, o sexo elevado à condição de tema central das preocupações de uma cultura. Normalizar um aspecto da vida, seja ele a loucura, o crime, a doença mental ou a sexualidade, implica por em obra dispositivos culturais que se ocupam em produzir e em constituir em suas margens os próprios fenômenos da loucura, do crime, da doença mental e da sexualidade. Eis o que, em Foucault, dá sentido à tese de poderes constitutivos, fabris e não meramente repressores ou negativos.

Por um lado, essas ocupações ocorrem no interior de um sistema de práticas bem-delimitado, chamado normal; ao mesmo tempo que se normaliza o sexo ou a loucura, em que eles dispõem de uma espécie de norma, cria-se, co-extensivamente, mais perversão e mais delírio, na medida em que a perversão e o delírio tornam-se operadores conceituais necessários ao sexo-norma ou ao modelo do razoável). O período vitoriano teria sido exemplar como prova disso: a maciça repressão sexual e ao corpo não apenas constituiu o sexo como um objeto digno de um campo de preocupações próprio, mas pôde conviver durante um longo período com pequenas efervescências perversas, que foram capturadas, mais tarde, pela própria medicina ao estabelecer o comportamento sexual cosidetto normal, mas também pela literatura de Sade e Sacher-Masoch, por exemplo.

2. Georges Battaille (1960, p. 71), em L’Erotisme, afirmara que “a transgressão suspende o interdito sem suprimí-lo”; indo além de Bataille, mas aproveitando a relação referencial entre o ato de transgressão e a afirmação dos conteúdos e da própria vigência da lei violada no seio dessa mesma transgressão, pode-se notar que a lei não se constitui sem constituir a possibilidade da transgressão. Assim como o sexo normal não pode ser constituído sem atrelar-se negativamente a uma série de perversões às quais parece negar vigência, tampouco o conceito de loucura pode estabelecer-se sem implicar uma certa dinâmica entre psiquismo normal e delirante. No seio do sexo-norma, como no da razão, constituem-se os conceitos de perversão e de delírio como seus limites negativos. O que não se pode dizer com certeza é até que ponto eles são exteriores ou interiores aos conceitos que constituem.

Embora na filosofia de Foucault não se possa confundir Lei e norma, ambas possuem sempre um referente, uma espécie de exterioridade impura que capturam excluindo-a do âmbito de sua aplicação com a finalidade, aparentemente paradoxal, de constituir seu âmbito normal de incidência.

Disso já podemos compreender o grande mal-estar de Giorgio Agamben ao arrostar um projeto político como o battailliano. A lei só se constitui supondo seu próprio bando – esse momento “excepcional”, mas ao mesmo tempo tão ordinário, em que se aplica desaplicando-se. Não é da condição normal da lei aplicar-se sobre a transgressão, mas como ela deixaria de aplicar-se se o ato de transgressão traz em si a marca simbólica daquilo que atravessa e constitui a lei em seus conteúdos cingidos por uma forma pura? Isso, entretanto, está muito longe de ser uma aporia. Ao contrário, constitui a própria dinâmica paradoxal que faz com que a norma encontre fundamento apenas na exceção.

3. Se o período vitoriano ocupava-se do sexo, mas apenas como quem se ocupa de um segredinho nojento, hoje não deixamos de ocupar-nos com ele; nem tão secreto, nem tão nojento. Fala-se, mesmo, em uma espécie de retorno do dionisíaco e do orgiástico que, ao que parece, faz-se de maneira intensamente liberadora; contudo, em seu fundo, ainda podemos encontrar a sexualidade como um dos terrenos par excellence em que se revela o corpo a corpo entre homens e dispositivos. O dispositivo da sexualidade, dentre outros dispositivos que anexamos a ele, produz correntes de subjetivação (fabricam sujeitos) ou de dessubjetivação (desconstituem, ou dissolvem, sujeitos).

Gostaria de citar alguns exemplos. É comum ouvirmos que vivemos uma espécie de retorno do culto ao corpo; jovens são capazes de passar horas enfurnados nas academias; idosos fazem musculação diariamente porque assim acreditam evitar os males da osteoporose, ou ganhar sobrevida – mesmo que não saibam exatamente muito bem para quê. Contudo, isso parece ir na contramão de tudo o que diz respeito a um retorno de culto ao corpo e aos prazeres, a um hedonismo eudemonista.

Já não cultuamos o corpo como puro meio, como um suporte físico a ser consumido pela vida compreendida como experiência. Tampouco somos capazes de ver no corpo um servo fiel do gozo; hoje, cultuamos o corpo como pura forma. O bodybuilding constitui o paradigma e o programa de nossa atual relação com o corpo: severas restrições alimentares, dieta, exercícios permanentes, ocupações infinitesimais, não com o corpo, mas para dar forma a ele. O corpo é apenas o suporte material sobre o qual se aplica uma pura forma. O corpo natural é feio, vadio, informe; algo a ser modificado, remodelado como artefato. Assim como os primeiros homens teriam modificado o estatuto da natureza, o corpo constitui a mais íntima natureza a ser enformada pela ação humana.

Quando o corpo passa a ser pura forma, como no caso do fisiculturismo – que há muito não é um território exclusivamente masculino – é sinal de que algo mudou nas relações entre nossos corpos e os dispositivos. A própria lei, que antes vigia como pura forma, que regrava e circunscrevia um âmbito próprio aos prazeres, passa a inscrever-se sobre o próprio corpo, a enunciar na forma que um corpo deve apresentar, toda a norma aplicável aos corpos dos homens.

4. O dispositivo da sexualidade também parece, algumas vezes, ter sido assaltado por uma pura forma. A pornografia sempre fora um dispositivo que subtrai a própria experiência do ato sexual. Não por acaso Laurent de Sutter falou recentemente a respeito da pornografia como uma metafísica do sexo, algo que não pertence à ordem da sexualidade concreta, mas àquela da “rêverie abstraite”.

Também recentemente, Gilles Lipovetsky pôde compreender nisso um exemplar do fenômeno da hiper-sexualidade: a convivência paradoxal entre infinitas possibilidades de rapports sexuais irreais, impessoais e ilimitados via internet (as jovens com suas webcams, as moças, célebres ou anônimas, que já não dividem suas camas apenas com os namorados, mas também com as filmadoras, câmeras fotográficas e gadgets de todo o tipo), contrasta com a decepção recorrente em atribuir-se um comportamento sexual efetivo apenas modesto e bem-comportado.

5. Agamben já falou do momento em que a pornostar olha fixamente na direção da câmera e, indiferente a seu partner, já não simula o prazer, mas adquire um semblante inexpressivo; o rosto angelical de Chloë des Lysses permanece indiferente ao parceiro e, a um só tempo, igualmente indiferente a toda a partilha de olhares com os espectadores. A pornostar vaza no próprio rosto um olhar fixo e vazio, realiza uma troca impossível com a câmara escura da filmadora. Seu rosto inexpressivo “rompe toda relação entre o vivido e a esfera expressiva”; torna-se, segundo Agamben, um puro meio, e engendra um potencial profanatório que o dispositivo da pornografia visa a neutralizar. “O consumo solitário e desesperado da imagem pornográfica acaba substituindo a promessa de um novo uso”, e assim o dispositivo pornográfico subjetiva o consumidor ao mesmo tempo em que o captura na distração de uma intenção propriamente profanatória (Agamben: 2007, p. 78).

O vazio do olhar de Chloë des Lysses engendra uma desarticulação entre a experiência e a expressão, entre a sensação demasiadamente atual, percutida no corpo, e um “semblante impassível”. Não é isso que Agamben contesta. Essa desarticulação indica a possibilidade de um novo uso do sexo a partir da intenção profanatória que radica na pornografia, e que não se confunde com uma simples perversão, na medida em que seria capaz de desarticular a própria relação de exceptio que mantém com a lei. Não se trata do que faz Chloë des Lysses, das obscenidades ou das sevícias que um corpo delgado suporta, mas persiste um campo de indiferença entre sensação e expressão, experiência e uso imediato do sexo: isto é, o potencial profanatório da pornografia estaria em liberar o sexo como puro meio benjaminiano, como meio sem-fim. Porém, quando o dispositivo pornográfico prescreve um uso com incidência no campo da normalidade (o consumo solitário, distraindo-nos da intenção de estabelecer um novo uso, capturando nossa atenção), o que se faz é substituir aquilo que constitui a própria experiência: a faculdade de fazer um uso livre de um objeto separado em uma esfera própria, divina, intocável pelos homens.

6. Não precisaríamos ir além do corpo, do sexo ou da pornografia para descobrir o potencial profanatório dessa desarticulação entre experiência e máquina de expressão e rostificação. Ela se apresenta em situações até mesmo mais derrisórias, como no turismo. Nele, fica patente a substituição da experiência da visão, do corpo, do prazer de ver e tocar, por uma espécie de gozo de prótese proporcionado pelas filmadoras e máquinas fotográficas digitais. Esse consumo imediato também está presente na pornografia; é o caso do “first-person shoot view” do pornô amateur. O consumidor solitário distrai-se com a visão em primeira pessoa de um partner completamente alheio à própria experiência que suas objetivas registram.

O que entra em jogo nessa normalização da experiência é o conceito de museificação do mundo, como aquilo que designa uma radical impossibilidade de uso. Um turista veneziano experimenta uma verdadeira exposição da impossibilidade do uso capturando imagens de Veneza com suas objetivas. Não se pode tocar na história, ela se tornou um objeto fora de alcance e fora de uso.

O quotidiano dos homens constrói-se neste infinito corpo a corpo travado com os dispositivos de captura. Mesmo os elementos mais derrisórios como o turismo, a escrita, a caneta, a linguagem, os telefones celulares, os microblogs, e até mesmo a forma-homem podem ser descritos como dispositivos atualmente em obra em nossa cultura. Em sua operação, encontramos a distração dos sujeitos, sob a forma organizada de sua própria subjetivação-dessubjetivação, a captura de “desejos demasiadamente humanos de felicidade”, que são separados de sua potência e intenção propriamente profanatórias. Subtrações infinitesimais atingem-nos corpos, sexos e interditam-nos a própria experiência. Por isso, Agamben diz que a tarefa de uma política que vem é, precisamente, desfazer essa interdição, recuperar a experiência, “profanar o improfanável”; mas para isso, nada é mais urgente que desarmar os dispositivos.

domingo, 1 de maio de 2011

A face humana da sociologia, por Laura Greenhalgh - O Estado de S.Paulo

Sociólogo polonês, Zygmunt Bauman é convidado do Fronteiras do Pensamento 2011 nos dias 11/07 (Porto Alegre) e 12/07 (São Paulo). Conheça as ideias do pensador que criou o conceito de Modernidade Líquida na entrevista para o Estadão.

Leia mais:
- A Sociedade Líquida: entrevista com Bauman para a Folha de São Paulo
- Medo líquido - Zygmunt Bauman
- Link original de A face humana da sociologia no Estadão.com.br

O polonês Zygmunt Bauman, com a sabedoria extra que os 85 anos de vida lhe conferem, cultiva a virtude da dedicação, a despeito das distrações temporárias. E ao cultivar tal virtude, torna evidente seu apego ao campo de estudos que abraçou há muito tempo: é um sociólogo em tempo integral. Acredita que suas ferramentas de análise da realidade precisam estar sempre à mão, prontas para dar mais uma volta no parafuso das nossas inquietações existenciais.

Dias atrás, ao receber um punhado de questões enviadas por email pelo caderno Sabático, este senhor de cabelos brancos e jeito de avô se pôs a escrever obstinadamente de sua casa na Inglaterra, enfrentando uma madrugada (insone, como admitiria) no compromisso de não deixar pergunta sem resposta. Não queria ser superficial, ou "perfunctório", acrescentou em tom solene. O retorno ao questionário não poderia ter sido mais generoso: o célebre criador do conceito de "modernidade líquida" flui em reflexões provocantes, desestabilizadoras, feitas sob o signo do ecletismo e da universalidade, como sempre. Quem lhe conhece a obra, já sabe: pode-se concordar ou não com suas análises sociológicas, mas permanecer indiferente a elas é difícil.

São mais de 20 títulos publicados no Brasil deste professor emérito das universidades de Varsóvia e Leeds, num total em torno de 250 mil livros vendidos. Recentemente chegaram às livrarias Bauman sobre Bauman, longo diálogo com o sociólogo inglês Keith Tester, e Vidas em Fragmentos, conjunto de oito ensaios em torno da sociedade de consumidores; e em junho será lançado 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno, material epistolar assinado por Bauman e publicado na imprensa italiana (todos pela Zahar). Aos admiradores do pensador polonês, vale o lembrete: ele é um dos convidados internacionais da série Fronteiras do Pensamento, tendo duas conferências programadas para Porto Alegre e São Paulo (11 e 12 de julho, respectivamente, mais informações no site www.fronteirasdopensamento.com.br.

A seguir, a versão editada da longa noite de insônia. Ao responder às questões que lhe foram apresentadas, Bauman não toca na influência que Janina, sua mulher, exerceu sobre suas ideias e visão do mundo. Janina Bauman é autora de Inverno na Manhã, o relato impressionante de uma menina judia em Varsóvia, durante a ocupação nazista. Também não chega a citar Gramsci, o pensador que o livrou da ortodoxia marxista, levando-o a ver que a experiência humana é ilimitada e "cultura é a faca que pressiona o futuro". Em compensação, Bauman nomeia um time de pensadores contemporâneos que o ajudam a demonstrar por que, na modernidade líquida, estamos condenados a mudar obstinadamente, carregando e reprocessando incertezas. Notem que o tempo todo ele chama atenção para as novas formas da desigualdade no planeta e faz um alerta: na sociedade global, a justiça será obra de acordos, não de consensos.

Quando o senhor expôs o conceito de modernidade líquida, anos atrás, pairou a impressão de pessimismo. Impressão que hoje parece ceder a uma percepção mais otimista da realidade: apesar das incertezas do nosso tempo, podemos construir uma sociedade que responda a tudo isso. Afinal, não terá sido sempre assim? Construir e reconstruir estruturas seria o nosso destino?

Zygmunt Bauman: Nossa sina, eu diria... Nós nos encontramos num momento de "interregno": velhas maneiras de fazer as coisas não funcionam mais, modos de vida aprendidos e herdados já não são adequados à conditio humana do presente, mas também novas maneiras de lidar com os desafios da contemporaneidade ainda não foram inventados, tampouco adotados. Não sabemos quais formas e configurações existentes precisariam ser "liquefeitas" e substituídas.

Diferentemente de nossos ancestrais, não temos uma noção clara de "destinação", nem do que seria, de fato, um modelo de sociedade global, economia global, política global, jurisdição global... Estamos reagindo ao último problema que se apresenta. E tateamos no escuro. Queremos diminuir a poluição por dióxido de carbono desmantelando as termelétricas para substituí-las por usinas atômicas, em que pese o espectro de Chernobyl ou Fukushima pairando sobre nós. Admitamos: hoje mais sentimos do que sabemos. E temos dificuldade em admitir que o poder, isto é, a capacidade de fazer coisas, foi cruelmente separado da política, isto é, a capacidade de decidir quais coisas precisam ser feitas e priorizadas.

O senhor expressa incômodo com a ideia, já transformada em rótulo, de pós-modernidade. Mas existe uma percepção de mudança, de passagem de um tempo para outro. Diante dos avanços tecnológicos, constatamos que nossas vidas mudaram, assim como nossos hábitos e nossas perspectivas de futuro. Estamos virando seres pós-analógicos?

Zygmunt Bauman: Não, somos modernos. Todos nós, em cada canto deste planeta, somos modernos. As formas de vida moderna podem diferir em muitos aspectos, mas o que as une é precisamente sua fragilidade, fugacidade, seu pendor para câmbios constantes. "Ser moderno" significa mudar compulsivamente. Não tanto "ser", mas "estar se tornando", permanecendo incompleto e subdefinido. Cada nova estrutura com a qual substituímos uma anterior, declarada obsoleta, prefiguramos um arranjo admitidamente temporário, "até nova ordem".

Então, a modernidade muda suas formas como o lendário Proteu... O que tempos atrás era apelidado erroneamente de "pós-modernidade", e que prefiro chamar "modernidade líquida", traduz-se na crescente convicção de que a mudança é a nossa única permanência. E a incerteza, a nossa única certeza.

Também estamos acometidos de um sentido de urgência e descartabilidade. É possível escapar a essas dinâmicas?

Zygmunt Bauman: Tem a ver com a sociedade de consumo. Tomemos os estudantes que hoje avidamente exibem suas qualidades em busca de reconhecimento e aprovação para entrar no jogo das carreiras. Ou clientes que aumentam gastos para obter novos limites de crédito. Ou ainda imigrantes lutando para garantir a demanda dos serviços que possam oferecer. Essas três categorias aparentemente tão distintas de pessoas estão prontas para disputar o mercado das commodities humanas, como matérias-primas atraentes e desejáveis. São, a um só tempo, a mercadoria e seus agentes de marketing, os bens de consumo e seus propagandistas.

Nesses termos, as pessoas começam a valer pela sua "vendabilidade". Elas mesmas procuram desenvolver qualidades para as quais haja demanda ou reciclar qualidades para as quais a demanda ainda possa ser criada, num processo que mistura valor social e autoestima. Nossa sociedade não está preocupada com a satisfação de necessidades, desejos e vontades, mas com a commoditização ou recommoditização do consumidor. Daí o sentido de obsolescência e descartabilidade que nos persegue.

A "cultura da celebridade", tão em voga e tão banalizada, tem a ver com tudo isso? Entra no cálculo do indivíduo vendável?

Zygmunt Bauman: As celebridades tornaram-se um fenômeno curioso. Elas parecem nos avisar que chegou a hora de rever o famoso veredicto de Descartes, "penso, logo existo", alterando-o para "sou visto, logo existo". E tão mais existo quanto mais visto for - seja na TV, nas revistas glamourosas, no Facebook. Como sugere o psicanalista francês Serge Tisseron, os relacionamentos significativos passaram do campo da intimité para o da extimité - ou seja, extimidade. Celebridades encarnam essa nova condição, funcionando como estrelas-guias, padrões a serem seguidos. Mostram o caminho para as massas que sonham e lutam para se tornar commodities vendáveis. Tudo isso comprova o apagamento da sacrossanta divisão entre a esfera privada e a esfera pública.

Transformamo-nos numa sociedade confessional: microfones são fixados no cofre-forte dos nossos mais recônditos segredos, violando aquilo que só poderia ser transmitido para Deus ou para seus mensageiros plenipotenciários. Hoje esses microfones se encontram conectados a alto-falantes que bradam nossas vidas em praça pública.

Em seu livro, num dos diálogos com Keith Tester, o senhor diz que justiça precisa ser entendida hoje como "responsabilidade por". Se as pessoas são levadas a se exibirem nas vitrines da extimidade, como imaginar que estariam interessadas pelo outro?

Zygmunt Bauman: Esta pergunta me leva a refletir sobre a crise global de 2008 e Amartya Sen (Prêmio Nobel de Economia de 1998) não usou meias palavras ao analisar as lições que deveríamos tirar dela. Enquanto algumas pessoas muito, muito ricas viram suas fortunas encolherem, pessoas muito, muito pobres, milhões delas formando a base da pirâmide social, foram duramente afetadas.

A conclusão de Amartya Sen, de tão cristalina, chega a ser óbvia: quem quiser avaliar corretamente a gravidade da crise que examine "a vida de seres humanos, em especial das pessoas menos privilegiadas, no que tange ao seu bem-estar e à liberdade de levar uma existência decente". Mas é nos momentos de crise que a desigualdade diária e rotineira, seja na distribuição de privilégios, seja na distribuição de carências, é bruscamente reformulada como se fosse uma emergência, um acidente desafiador da "norma".

Hoje, estamos sujeitos a distintas catástrofes, a começar das ambientais, como terremotos, tsunamis... Mas também deveria ser assumida como catástrofe da humanidade a maneira desigual como uma crise econômica pode bater num país em comparação a outros.

Por que é difícil entender a vulnerabilidade econômica e reagir a ela?

Zygmunt Bauman: Entre outros motivos, porque categorias de pessoas cronicamente carentes tendem a aceitar a sua sorte por conta de certa inevitabilidade, ou normalidade, que seja. Sofrem docilmente. São ineptas para denunciar as condições em que vivem. Acho muito pouco provável que cheguemos a um modelo "não contencioso" de sociedade justa. Porque enfrentamos dilemas insolúveis, sendo assim, nosso caminho será o de uma solução "acordada" de sociedade justa.

Que saídas têm os jovens nesse tempo em que a justiça será mais fruto de um acordo do que de um consenso? Que narrativas de vida o mundo globalizado lhes oferece?
Zygmunt Bauman: Respondo pensando na formação superior de milhares de jovens hoje em dia. As mais prestigiosas instituições acadêmicas do mundo, que concedem os diplomas mais cobiçados, estão ano a ano, constante e incansavelmente, se afastando do chamado "mercado social" e mesmo das multidões de estudantes cujas esperanças de prêmios cintilantes elas acenderam e inflamaram.

Como o analista econômico William D. Cohan informou recentemente, o preço de anualidades e taxas em Harvard subiu 5% ao ano, nas últimas duas décadas. Em 2011, a anuidade atingiu o patamar de US$ 52 mil. Para arcar com essa quantia, alguém teria de ganhar no mínimo US$ 100 mil anuais, livres de impostos. Contudo, dos 30 mil candidatos a Harvard no ano passado, somente 7,2% foram aceitos. E a demanda por vaga continua alta. Para milhares de casais para os quais esses valores, embora exorbitantes, não são obstáculo, fazer com que seus filhos frequentem Harvard ou algum outro estabelecimento acadêmico desse porte é questão de rotina.

E não só: a decisão pode ser compreendida como o exercício de um direito herdado, o preenchimento de um dever familiar e o toque final antes que estes jovens se acomodem no lugar que lhes é destinado pela elite. Mas também existem outros milhares de casais dispostos a sacrifícios financeiros para conduzir seus filhos a essa mesma elite, de tal forma que seus netos possam aspirar à mesma formação, tornando tal passagem uma legítima expectativa.

Mas, será que este é um bom projeto de vida? Cohan vem com uma lista impressionante de novos bilionários, de Steve Jobs, fundador da Apple, ao inventor do Twitter, Jack Dorsey, e o fundador do Tumblr, David Karp - e todos, sem exceção, abandonaram os estudos. Karp bateu o recorde ao não passar um único dia no câmpus desde que largou o colegial no primeiro ano.

Ou seja, a formação acadêmica não seria mais o passaporte para um bom futuro?

Zygmunt Bauman: Um diploma de primeira linha foi, durante muitos anos, o melhor investimento que pais amorosos poderiam fazer no futuro de seus filhos, e dos filhos de seus filhos. Acreditava-se nisso. Mas esta crença, como tantas outras que fizeram o Sonho Americano (e não só americano, reconheçamos) está sendo abalada hoje. O mercado de trabalho para os possuidores de credenciais de educação encolhe em termos globais, isso é um fato.

Hoje muitos daqueles que se diplomaram com alto sacrifício familiar veem os portões do sucesso ser fechados na sua cara. A verdade é que a "promoção social via educação" serviu durante muitos anos como folha de parreira para tapar a desigualdade nua e indecente: enquanto as conquistas acadêmicas estavam correlacionadas a recompensas sociais generosas, as pessoas que não conseguiam ascender nessa direção só podiam se culpar - descarregando sobre si mesmas amargura e ódio.

Agora nós nos defrontamos com um fenômeno novo, que é o desemprego entre os formados, ou então o emprego em nível muito baixo de expectativas, mas tanto uma coisa quanto outra têm potencial explosivo, basta ver os recentes levantes no Oriente Médio. Como enfatiza Cohan, os egípcios rebelados são gente jovem com educação superior, mas sem emprego, gente que já vem sofrendo com isso há algum tempo sem encontrar perspectiva. Posso também pegar o exemplo da Polônia, onde nasci.

Nos últimos anos, foi espetacular o aumento nos custos da educação, assim como foi espetacular a polarização da renda e a desigualdade social. Recente reportagem do jornal polonês Gazeta Wyborcza traz impressionantes relatos de jovens diplomados em boas escolas, que hoje se sujeitam a ocupações muito aquém daquilo com que sonharam. Eles guardaram seus diplomas entre as lembranças da família, e partiram para ganhar a vida.

O mundo assiste à emergência de novas potências, e o Brasil é apontado como uma delas. Chineses são hoje os grandes consumidores do circuito de luxo em Paris e Nova York. A lista da revista Forbes nos últimos anos revela novos magnatas. O dinheiro circula mais, e mais intensamente. Tudo isso também não vem reconfigurando as aspirações de vida?

Zygmunt Bauman: Cem anos atrás, quando indagado por que decidira dobrar os salários de seus trabalhadores, Henry Ford respondeu que havia feito isso justamente para permitir que eles comprassem os carros que estava produzindo. Na verdade, o magnata foi ainda mais realista do que a sua famosa declaração: embora seus operários dependessem dele para ganhar a vida, Ford dependia 100% daquela mão de obra localmente disponível, que mantinha as linhas de montagem operando, o que lhe garantia mais riqueza e poder.

A dependência então era mútua e Ford não tinha escolha. Ele não dispunha da "arma de insegurança máxima" que existe no mundo globalizado, ou seja, o poder de decisão sobre mudar a riqueza para outros lugares, particularmente para endereços fervilhantes de pessoas prontas para sofrer sem chiar, muitas vezes em troca de salário miserável: o capital de Ford era "fixado" no lugar. Estava afundado num maquinário pesado, volumoso e muito bem trancado entre paredes fabris. Isso mudou. Aquele contrato não escrito entre capital e trabalho, assentado na dependência mútua, se rompeu gerando uma desigualdade estarrecedora, com repercussões nas condições de trabalho da mão de obra metropolitana, como estudou Branko Milanovic, o principal economista do departamento de pesquisa do Banco Mundial.

Já o professor Tim Jackson, da Universidade de Surrey, em sua obra mais recente, Redefining Prosperity, alerta: o modelo de crescimento dos nossos dias produz danos terríveis por ser medido apenas pelo aumento da produção material, e não pela melhoria de serviços em áreas como lazer, saúde, educação. E isso evidentemente afeta os emergentes: passamos de uma desigualdade declinante entre os países para uma desigualdade crescente dentro de muitos deles. Porque os capitais, movimentando-se através dos fluxos globais, e agora "livres da política", como bem salientou Manuel Castells (sociólogo espanhol, autor de A Sociedade em Rede), procuram avidamente áreas com padrões rebaixados de vida, portanto mais receptivas a um tratamento de "terra virgem".

Consciência ambiental pode ser o caminho para reequilibrar certas dinâmicas globais?

Zygmunt Bauman: Lembro do memorável paralelismo que Lewis Mumford (historiador americano, autor de O Mito da Máquina) estabelece entre mineração e agricultura: a primeira fere, destrói, enfeia o meio ambiente. A segunda sana, regenera, embeleza. A primeira torna os terrenos inabitáveis, a segunda os torna hospitaleiros. A primeira viola, extrai, retira, arrasa, deixa o vazio atrás de si. A segunda cuida, ajuda, acrescenta, enche, preenche: preserva a vida.

Mumford refletia sobre as bênçãos da agricultura numa época em que ela ainda servia, em sua totalidade, ao sustento humano, e não aos ganhos financeiros, como acontece agora. Referia-se à agricultura feita na medida das necessidades humanas, estável, resistente, finita.

Hoje, o que estamos vendo? O planeta, com seus recursos limitados, ainda pode satisfazer às necessidades humanas, mas tem se mostrado totalmente inadequado para saciar a rapacidade humana, movida por esse insaciável "apetite pela novidade". Somos incentivados, forçados ou atraídos a comprar e a gastar. Ou melhor, a gastar o que temos e o que não temos, na esperança de ganhar no futuro.

Não é justamente isso o que move a economia? O "apetite pela novidade" não seria um elemento constitutivo do capitalismo?

Como destacou Adam Smith, o grande teórico de A Riqueza das Nações, devemos nosso suprimento diário de pão fresco à ganância do padeiro, e não ao seu altruísmo ou aos seus elevados padrões morais. É graças à gana, de resto absolutamente humana, pelo lucro que os bens são levados às bancas do mercado e nós podemos ter a certeza de encontrá-los lá.

O próprio Amartya Sen admite que não é possível ter uma economia florescente sem a ampla participação dos mercados, também imprescindíveis para a constituição de um mundo próspero e justo. Mas o que se coloca em questão hoje é a capacidade de uma sociedade de resolver, ainda que imperfeitamente, os problemas que ela própria cria, ou os conflitos e os antagonismos sociais que ameaçam sua preservação.

A solução, me parece, não virá do reforço ininterrupto do "apetite pela novidade", nem da ganância ou avareza que mantêm a economia florescendo. Afinal, que aspectos da condição humana levam os indivíduos a buscarem compensações nos mercados? Há alternativas a isso?

Tim Jackson propõe uma reação baseada em três pontos: 1. conscientizar as pessoas de que o crescimento econômico tem limites. 2. convencer os capitalistas a distribuir lucros não apenas segundo critérios financeiros, mas em função dos benefícios sociais e ambientais. 3. Mudar a "lógica social" dos governos, para que os cidadãos enriqueçam suas existências por outros meios, que não só o material. Como se vê, a economia já não pode mais depender apenas da ganância do padeiro. Terá de se apoiar numa coexistência humana organizada, de que ainda dispomos.
COLABORARAM ANNA CAPOVILLA E CELSO PACIORNIK 

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* Entrevista com ZYGMUNT BAUMAN: a face humana da sociologia http://goo.gl/RDLdj -> Bauman é convidado do #FRONTEIRAS 2011 about 12 hours ago

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