quinta-feira, 28 de abril de 2011

Não se sabe - Sandra Corazza - UFRGS

Não se sabe...

Não se sabe se a sua vida consiste numa existência individual; se a sua natureza consiste num fato biológico; ou se a sua cultura consiste num modo de ser social. Não há indicações a respeito, a não ser que, de jeito algum, trata-se de um animal rationale ou de uma imago Dei. Até que um outro – mundo possível? – chegasse, foi identificado à existência primordial. Em função de tal proveniência, através dos tempos, foi considerado como o humano em geral. E, só muito recentemente, viu-se que a sua ação transcorre de forma selvagemente sentida; logo, na antípoda do que é entendido por humano. Pluralidade de forças em permanente tensão, o seu movimento estabelece hierarquias temporárias. Pensamentos, sentimentos e impulsos encontram-se em luta, mas também seus tecidos, órgãos e células. Atua contra sentidos estabelecidos, normas coercitivas, querer divino, ídolos axiológicos da moral, arrière-monde. Opera, antes de tudo, contra a morte. Não visa objetivos, não admite tréguas, não prevê fim. A partir do combate incessante, surgem forças dominantes, que o fazem agir, e forças dominadas, que o levam a reagir. São essas forças que constituem sua vida, natureza e cultura. Sendo um fora-da-lei, fora-do-contrato, fora-da-instituição, tem retiradas as possibilidades dos seus instintos atuarem, quando fica encerrado no âmbito da Família, do Édipo, da Escola, do Estado, dos Direitos Humanos, da Paz. Então, esses instintos voltam-se contra si mesmos e o seu desenvolvimento ruma para o espírito de gregariedade: mediano, vulgar. Ao lutar contra a desvalorização dos instintos estéticos – tanto apolíneos como dionisíacos – pela razão, é um rebelde, em face do saber consciente que diminui sua sabedoria instintiva. Em seu querer, o sentir e o pensar encontram-se imbricados e o pensamento disseminado pelo corpo. Ao articular vida e pensamento, faz experiências com todas as coisas, sobretudo consigo mesmo. Detesta o preceito Tudo o que é belo é racional e nunca subordina a poesia à lógica, por considerar que os instintos vitais é que constituem sua força afirmativo-criativa. Aliando tal força à hipertrofia da consciência e da memória, esquece. Para sentir alegria, leveza, esperança, orgulho, basta-lhe a inconsciência salutar associada ao esquecimento. Instalado no limiar do instante, apaga lembranças, já que sem esquecer não age e não vive. Nas relações com o meio, a superficialidade é um dos seus traços marcantes e até mesmo definidor. Possui a pretensão de saber como suas ações são produzidas, mesmo que elas nunca sejam o que lhe parecem ser. Mostra-se, por vezes, como uma unidade, forma mais alta, suprema espécie de ser, progresso da consciência, conhecimento absoluto, critério superior de valor; embora seja apenas conjunturalmente utilizável para a manutenção da vida em grupo. Nos conceitos, gêneros, espécies, categorias, sistemas, encontra somente anseios e necessidades humanas de sobrevivência. Assim, desmascara as ilusões das ciências humanas e sociais, da religião e da moral, mostrando que elas são sintomas de um regime utilitário do agir. Sintomas que introduzem sentidos e atribuem fixidez a seu desregramento instintual. Necessário, assegura a própria existência, na medida em que se dota de um caráter simplificador. Faz-se inteligível, ao tomar consciência de si, em relação com a comunidade. Deixa, portanto, de ser incomparável, único, ilimitadamente singular, para ir se tornando confiável e constante, raso e ralo, generalizado e indeterminado, simétrico e estúpido, falsificável e traduzível na perspectiva do rebanho. Dobrando-se a tudo o que é altivo, conquistador, dominador, torna-se brando e tranqüilo, fazendo de si uma permanência na mudança. Como rede de ligação entre os humanos, equivale à regularidade dos costumes, alma, espírito, essência, sujeito, agente, objeto, causa, efeito, substrato, ser, razão, consciência, verdade, Eu. Sua moralidade define-se pela capacidade de obedecer a leis, cujo referencial regulador encontra-se na tradição, tida como autoridade superior, à qual obedece – não porque ela lhe manda fazer algo, mas simplesmente porque ela manda. Adestrado, conceitualiza pela identificação de dessemelhantes; pensa as coisas mais simples do que são; e responsabiliza- se por suas ações, incluindo o ato de pensar. Desse modo, serve aos fracos, às almas iguais, e suprime a diferença, gerando metafísicas assentadas em falsos problemas. Caudatário de forças reativas, que se colocam em primeiro lugar, faz com que essa reatividade elimine a primazia de suas forças agressivas – criadoras de novas direções. Nesses arranjos mecânicos, regulações, funções adaptativas, expressa o poder das forças dominadas; embora realize esforços continuados por mais potência – como vitória sobre si mesmo, tendência a subir, vontade de auto-superação. Por isso, é essencialmente mutável, princípio pelo qual a sua própria vida se supera. Como uma ficção convencional – mas dotada de um caráter de realidade –, vive um processo de formação, no qual a moralidade é o meio necessário para o seu amadurecimento enquanto indivíduo soberano. Então, livre, de vontade inabalável, prescinde da moral, libertase dos costumes, cria valores e organiza a exterioridade mediante a introdução de formas, que têm seu respaldo na interpretação e na avaliação. Como produto dessas ações, torna-se autônomo e supramoral. Despren dido das coordenadas sociais e do poder ordenador da lei, propugna um nada de teórico e de prático, e tudo pelo trágico, fazendo o mundo à sua medida e tendo o conhecimento do mundo que merece. Não se sabe se esse desterritorializado ainda pode ser chamado infantil, como um derivado da ação genérica da cultura; ou se terá chegado o momento, em que já não tem nenhuma importância chamar ou não chamar infantil àquilo que dele é dito e pensado. Deslocado no tempo, precipitado e ativado, tornado positivo e criador, não pode deixar de existir. Só que já não é mais ele mesmo... Desligado da falsa infância que nunca houve, faz proliferarem desejos, paixões e conexões com o campo social e político. De maneira a ser irremediavelmente multiplicado, enquanto condição da própria criação: “um novo começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um movimento inicial, um sagrado dizer ‘sim’” (Nietzsche, s./d., p. 44).

Sandra Corazza

Recebido em maio de 2005 e aprovado em julho de 2005.
Referência bibliográfica
NIETZSCHE, F.W. Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. Trad. de Mário da Silva. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.

Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 93, p. 1205-1208, Set./Dez. 2005
Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br>
Fonte da imagem: servidorpublico.net

Corpo Sem Órgãos




sábado, 23 de abril de 2011

Entrevista com Dr. Jorge Bichuetti

Companheiro de guerrilha virtual a favor dos excluídos e da paz universal, Jorge Bichuetti é médico e psicoterapeuta. Analista institucional e esquizoanalista. Diretor Clínico da Fundação Gregorio F. Baremblitti/ Uberaba - MG. Professor do Instituto Félix Guatarri/ BH. Autor de Lembranças da Loucura, Crisevida e Estrelas Cadentes. Poeta, militante, sonhador...
... Entre amigos, madrigais e a Lua é um nômade caçando o seu devir passarinho.


1. Jorge, o que é realidade, o que é sonho e o que é utopia?

Tânia, é uma alegria conversar com você, suas tribos, insurgentes vidas do porvir. A realidade é uma sub-realidade, um concreto de opressão, exploração e mistificação, que suprime do cotidiano as lutas libertárias, as paixões energizantes e a magia rebelde das virtualidades; o sonho é uma poesia caótica entre as dores da vida e o pulsar do porvir, teimoso, menino moleque, que deseja acontecer; e a utopia, é o sonho pensado visceralmente e assumido como ética, luta e compromisso, é a alvorada que já não é esperada, é buscada, tecida, amada e vivida com a ousadia da luta e com a rebeldia da esperança...

2. De que maneira Deleuze e Guattari, Spinoza e Foucault influenciaram ou influenciam diretamente a sua prática cotidiana de médico psiquiatra?

Eles me deram um olhar de amor e compaixão, liberdade e partilha... Me tiraram dos muros da medicina classificatória e excludente, e me revelaram na loucura, no sofrimento mental, um emergente que denuncia e anuncia... Diz do insuportável e clama por um outro mundo possível... Me fez ver, onde via a doença, a singularidade, o devir, a diferença... E, assim, me ensinaram que o cuidado é vínculo, alegria, ternura, inclusão social e militância por um mundo onde possamos verdejar nossas potências, longe das algemas da normalidade, castradora e asfixiante.

3. Seu blog, Utopia Ativa, é um espaço revolucionário e, ao mesmo tempo, pensante e contestador daquilo que se entende como “normalidade” social. É um território de desterritorializações onde há conexões de fluxos e delírios comunicativos, rejuntando arte, vida, poesia e realidade. Quais são as suas bandeiras de luta e por quê?

Meu blog é um espaço do sonho, da poesia, da luta do povo oprimido que caminha, guerrilha dos becos do cotidiano e sonha com a aurora... Não sei sintetizar minhas bandeiras: são do povo, são as da Terra, são as da vida... Atraveria dizer que luto "por uma nova Terra, por um povo por-vir"... Pelo socialismo libertário; pelo direito à diferença e pelos direitos humanos... Pelo pão nosso de cada dia: pão-alimento; pão-alegria; pão-liberdade; pão-utopia... sou um andarilho das insurgências rebeldes que nos trazem a luz de um novo dia. Por quê?... Pela injustiça, pela lágrima que corre e pela vida não-vivida em cada vida que encontro violentada pela opressão da nossa vil realidade; e por mim, pois, não sei nem quero ser feliz longe da solidariedade e do povo que dá sentido à minha própria vida.

4. A esquizoanálise e o esquizodrama são técnicas que podem ser consideradas pontos de partida para a inclusão do portador de transtornos psiquiátricos no tecido social? Se sim, como isso acontece e quais são os seus benefícios?

São libertárias e permitem a construção de vidas remoçadas nas singularidades que rodopiam sem conseguir criar planos de consistência para seus sonhos e desejos. E trabalham agenciando o novo, a alegria, o brincar, a arte os devires... Isso contagia, isso cria vida. O cinzento normatizador nos silencia e nos cronifica, longe de nós mesmos. Ficamos bem adaptados, porém, numa silenciosa morte civil


5. Por que devemos inventar novas linhas de fuga e traçá-las na vida se elas mesmas, às vezes, são fugidias?

Porque a vida não contempla a vida que carregamos como diversidade, potência, singularidade e devires... São fugidias. Primeiro, porque são vigiadas, negadas e esvaziadas, capturadas pelo sistema; segundo, e isso é maravilhoso, porque são errantes, uma vez que somos metamorfoseantes. Então, precisamos viver, educar e cuidar para a impermanência, para a criatividade, para a emergência de um novo novo, uma nova mudança.

6. Você já sofreu diretamente algum tipo de preconceito ou foi vítima de bullying por ser um médico que pensa o mundo de forma holística e enxerga o ser humano como potência de um devir-desejante-de-libertação dos padrões fascistas, aqueles que são esquadrinhados pela mídia e pela atual sociedade de consumo?
  
Já, mas hoje quase nunca. No início, era sementeira; hoje, há frutos e flores que me permitem andar como uma borboleta que escolhe o que visita, o que cheira e o que come... Não escuto os que negam a vida. Se percebo vida nas críticas, dialogo e cresço. Senão, sigo com as minhas utopias e com os usuários que cantam, poetizam e vivificam nas estradas do cotidiano a validade do cuidado-amor e do cuidado-alegria, da inclusão, da liberdade, da caminhada de partilha. Não sofro bullying, porque aprendi a ver nos que estigmatizam um medo de si e um terror por fugirem dos próprios desejos; agridem por se temerem na loucura, que negam mas que a abrigam nas entranhas de si mesmos...

7. Jorge por Jorge?

Oh! Um militante do porvir, da liberdade e da solidariedade, um menino... e um poeta de sonhos, amores, luares e passarinhos... um homem comum na sua caminhada com o povo oprimido.

Quero agradecer, com imensurável alegria, ao meu querido amigo, Jorge Bichuetti, a sua disponibilidade  e atenção ao responder brilhantemente às questões propostas por mim para este post. Estamos certos de que sua contribuição intelectual, construída por meio de seus conhecimentos e pela sua luta diária na profissão,  pelos seus sonhos e utopias, pelo desejo de construir um mundo melhor, servirá de exemplo a todos aqueles que, assim como nós, pensamos na libertação do ser humano das amarras que o aprisionam em nome de um sistema excludente, violento, asfixiante, injusto, perverso, normatizador e consequentemente opressor. Jorge, muito obrigada e um grande beijo para ti.

Tânia Marques  23 de abril de 2011

Fonte das imagens: 

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Movimento e devir-minoria

Faz parte de um equívoco cultural dos sentidos que se creia que o conceito de movimento se refira somente à alteração do espaço ocupado pelos corpos num tempo medido. Saiu daqui pra lá. Ou de lá pra cá. No entanto, no plano das intensidades, só há movimento quando há devir. Quando as composições materiais (corpos) e imateriais (idéias e afecções) entram numa configuração (encontros) que altere a produção da existência e abra espaço para o surgimento do Novo.

E é no sentido do movimento como devir que os filosofantes Gilles Deleuze e Félix Guattari apreenderam na configuração da subjetividade capitalística algumas linhas desestabilizantes: cortes no bloco rígido do existir no capital, no sucesso, no “american dream” embalado e traduzido em todas as línguas do mundo. O que foge ao padrão de consumo do capital é considerado outsider, e portanto é tratado pela Sociedade de Controle como marginal (à margem). Um negro, uma mulher, uma criança, um animal, por existirem fora da nomeação e da pontuação temporal-normatizante da “boa sociedade”, podem constituir, com seu modo de existir, um foco de estranhamento àqueles que, por jamais experimentarem algo fora, não podem saber que estão dentro. Estas categorias, por serem consideradas diferentes, são chamadas de minorias.

Claro que para engendrar movimentos intensivos, não basta por si só ser negro, mulher, criança, animal. Colin Powell é negro, Condoleeza Rice é negra e mulher, e no entanto, trabalha a favor do bloco rígido do capitalismo. A maior parte das crianças do mundo são idosas. Tem muita idade. Algumas já nasceram velhas, pois carregam os mesmos vícios da sociedade onde vivem. Um devir-animal sem escapar da antropomorfização dos animais zoologizados não pode existir.

Para engendrar o movimento deviriano, é necessário despersonalizar o corpo, produzir encontros múltiplos, experiências diversas à cotidianeidade, abrir novas conexões e composições, para que as afecções possam criar alternâncias que aumentem as potências de agir das pessoas, o que sempre vaza para o plano da comunalidade.

Produzir um acontecimento que não possa ser capturado pelos parâmetros da norma, da maioria padronizante. É deixar escapar o devir-minoria, que é intensidade e não número. E para isso, não precisa ser categorizado como minoria. Basta deixar passar os fluxos de alegria.

Fonte do texto:
http://afinsophia.wordpress.com/2007/08/
Retirado do Blog Afinsophia

sexta-feira, 15 de abril de 2011

De líneas y composiciones


Se puede partir de la segmentaridad dura, es más fácil, está dado; luego, ver cómo coincide más o menos con una segmentaridad flexible, una especie de rizoma que rodea las raíces. Y luego, ver como a esto se añade todavía la línea de fuga. Y las alianzas, y los combates. Pero también se puede partir de la línea de fuga: quizá esa sea la primera, con su desterritorialización absoluta. Es evidente que la línea de fuga no viene después, sino que está presente desde el principio, incluso si espera su oportunidad, y la explosión de las otras dos. En ese caso, la segmentaridad flexible sólo sería una especie de compromiso, que procede por desterritorializaciones relativas, y que permite reterritorializaciones que bloquean y remiten a la línea dura. Es curioso cómo la segmentaridad flexible está atrapada entre las otras dos líneas, dispuesta a inclinarse de un lado o de otro, esa es su ambigüedad. Y todavía hay que ver las diversas combinaciones: la línea de fuga de alguien, grupo o individuo, puede perfectamente no favorecer la de otro; al contrario, puede obstaculizársela, bloqueársela, y arrojarlo con mayor motivo a una segmentaridad dura. En el amor puede suceder que la línea creadora de uno sea el encarcelamiento del otro. La composición de las líneas, de una línea con otra, incluso si son del mismo género, plantea un problema. No es seguro que dos líneas de fuga sean compatibles, componibles. No es seguro que los cuerpos sin órganos se compongan fácilmente. No es seguro que un amor, o una política lo resista

Pintura: Jean Philippe Arthur Dubuffet

Pedagogia Libertária e Pedagogia Crítica

Resumo

O objetivo deste texto é apresentar a Pedagogia libertária e a Pedagogia Crítica, explorando as interfaces entre ambas. Inicialmente, expomos, de maneira sintética, a Pedagogia Libertária: suas origens, fundamentos e princípios. Então, analisamos, a partir dos seus principais representantes, a Pedagogia Crítica. Por fim, abordamos as possíveis confluências entre estas tendências pedagógicas.

Palavras-chave: Educação, Pedagogia Crítica, Pedagogia Libertária

Leia o texto na íntegra clicando aqui.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Crise, subjetivação e devir

                                                              
Não aprendemos, todavia, que a vida é uma turbulência permanente, ela é efervescência, pulsação vitalizante e saltos de ruptura e invenções do novo e da mudança... Ela se dá, acontece, caminha... permeada de crises... Movimenta-se no torvelinho das crises e se renova nos redemoinhos das crises... Não há vida sem crises... A ausência de crises revela estagnação, apatia mórbida, acomodação parasitária e morte civil... A crise é insurgente, instituinte, inovadora... Dela emergem o novo e o inédito viável, a utopia concretizada e a atualização do devir... Somos seres do devir... Somos movimento... E a vida é movimento e devir...
Contudo, o mundo como se encontra instituído odeia a rebeldia insurgente e revolucionária das crises... Na sociologia, é desclassificada como uma anomalia, anomia... Na medicina, é patologizada como desvio, transtorno, doença... Entretanto, a crise só cronifica-se como uma negatividade inscrutada no corpo individual e social, quando se abortam sua potência inovadora e a capturam com forças normatizados e restritivas, que mortificam o corpo e a sociedade numa paralisia com elementos de morte que vigiam, controlam, danificam os emergentes da vida nova que estão pulsantes e sedutores numa crise. Temos, assim, as crises... Preferimos a paz do pântano com suas águas pestilentas na quietude da proliferação repetitiva dos fluxos mortíferos...
Vida é água que corre e corre nas correntezas que são nossas crises... Ali, ela renova-se, ganha força, contorna obstáculos, se refaz... Se reinventa e se energiza... A crise é um analisador... Um analisador que desvela a verdade esfumaçada da falência da vida como estava sendo vivida e do mundo como este acontecia... Por isso, ela clama por mudanças... impõe mudanças... exige mudanças...
Se fugimos, se negamos, se fechamos os olhos, os ouvidos e os poros da própria pele, ela se mantém força rebelada, porém, vulnerável, e é aprisionada pelos que e pelo que evita no sistema, na realidade e na própria o novo, a mudança, um novo horizonte , um alvorecer de novas alegrias...
Vida - é "rizoma, fluxo subterrâneo, linhas de fuga"... que emergem num processo de crise.. E é isto que leva Leonardo Boff afirmar: " A crise representa purificação e crescimento"... Ela tira a vida da morte que é mormaço, sonolência, preguiça existencial... A crise é passarinheira, anuncia a aurora... Nas suas entranhas, vivem as subjetivações libertárias e os devires inovadores, potências do porvir, plenitude do alvorecer... Cuidar não, então, retomar a mesmice falida; e acolher, maternar, secar lágrimas, abraçar solidariamente para que com a forças de nossas mãos unidas possamos voar sobre o abismo e alcançar o novo, um novo jeito de viver e existir; o novo, uma nova sociabilidade um novo mundo possível...
Há na crise uma denúncia e uma profecia... Uma vida e um mundo, moribundos... E uma vida e um mundo, cheios de vida e de vida nova, querendo vir à tona, emergir, ganhar um lugar na estrada... Crise é vida... E "a vida acontece em partos de dor"... Assim, nos ensinou o velho passarinheiro Nietzsche no seu livro Humano Demasiado Humano... A crise, para Nietzsche é um chamado para o "grande livramento"... É caminho... caminho de libertação...

Fonte: http://jorgebichuetti.blogspot.com/

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Ética e cuidado de si: uma possibilidade de resistência em Foucault

Gláucio Oliveira da Gama*
glaucio_gama@hotmail.com

Cláudio Oliveira da Gama*
claudiodagama@hotmail.com

Luiz Celso Pinho**

*Curso de Graduação em Licenciatura em Educação Física
Ex-bolsista Faperj
**Prof. Adjunto, DLCS, ICHS, UFRRJ
(Brasil)
Resumo

O corpo social, ao longo dos anos, consolida-se como algo fabricado, influenciado por uma coação calculada, esquadrinhado em cada função corpórea, com fins de automatização. Daí surge a questão da liberdade, como uma forma do poder se estabelecer, pois Foucault acredita que a compreensão que temos de nós mesmos como pessoas capazes de efetuar escolhas livres e autônomas é, ela própria, uma construção que nos permite ser governados. A disciplina tanto incentiva comportamentos positivos e meritocráticos quanto serve como ferramenta para o adestramento e docilidade dos corpos que ocupam os espaços institucionais.
Todo tipo de comportamento e de conhecimentos (saberes) referentes ao indivíduo são oriundos dessa produção do poder disciplinar. Assim é o indivíduo moderno: alvo, sujeito, dócil ao poder; mas ao mesmo tempo seu veículo, agente e instrumento. Para o filósofo, o cuidado de si apareceria como uma conversão ao poder, ou seja, uma forma de controlá-lo.

Unitermos: Sociedade. Poder. Disciplina. Ética. Contra-poder. Foucault

Abstract

The social body, over the years, consolidates itself as something made, influenced by a coercion calculated, scanning every body function, for purposes of automation. Hence arises the question of freedom as a form of power to establish, as Foucault believes that the understanding we have of ourselves as people capable of making free and autonomous choices is itself a construction that allows us to be governed. The course encourages both positive behaviors and meritocracy as serving as a tool for training and docility of the bodies that occupy the institutional spaces. Every type of behavior and knowledge (knowledge) for the individual are from the production of disciplinary power. This is the modern individual: subject, submissive to power, but while your vehicle, agent and instrument. For the philosopher, the care of the self other appear as a conversion to power, or a way to control it.

Keywords: Society. Power.


Introdução

Estudar (com) Foucault é pensar, refletir acerca de outras possibilidades que não sejam as evidentes, as instituídas como verdades absolutas. Nesse sentido, a crítica constante, colocada como um parâmetro crucial da atitude filosófica serve aqui como base para todo o estudo que se pretende desenvolver. Este, portanto, trata-se de um ensaio filosófico com vistas a uma busca do entendimento de Michel Foucault, utilizando de seu método genealógico, do que vem a ser o poder disciplinar, sua atuação na sociedade moderna e sua possível tentativa de consumar um contra-poder através das técnicas de si, ou a ética do sujeito.

Ao afirmar que “em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações” (FOUCAULT, 2004, p.126), Foucault já explicita que formas de micropoderes perpassam informações, acarretando instantaneamente em transformações e modificações de condutas por todo o corpo social, atribuindo influências de certos tipos de poder nas manifestações dos indivíduos. Para Pignatelli (2002, p. 129), “o sujeito obediente é produzido e sustentado por um poder pouco notado e difícil de denunciar: um poder que circula através dessas pequenas técnicas, numa rede de instituições sociais tais como a escola”. Mas, falar num poder tão abrangente que não permite uma escolha por parte daqueles que são por ele influenciados, nos dá um leve desespero: será mesmo que não temos escolhas? São todas elas um posicionamento de um poder instituído? As leis mundanas e religiosas nos dizem que somos livres e autônomos. Será? Eis algumas proposições (...)

Resultados e discussões

O corpo social, ao longo dos anos, consolida-se como algo fabricado, influenciado por uma coação calculada, esquadrinhado em cada função corpórea, com fins de automatização. Quando pensamos nas ações da forma de poder instituída nas disciplinas, devemos identificar algo que vai além de seus mecanismos, responsáveis por efetivar suas intenções:
“A disciplina, ao sancionar os atos com exatidão, avalia os indivíduos com verdade; a penalidade que ela põe em execução se integra no ciclo de conhecimentos dos indivíduos” (FOUCAULT, 2004, p. 162). Este conhecimento gerado possibilita uma forma de controle cada vez mais intenso, deixando os individuos expostos a uma visibilidade que os fazem eles próprios, “fiscais de si mesmos’. Todo tipo de comportamento e de conhecimentos (saberes) referentes ao indivíduo são oriundos dessa produção do poder disciplinar.

A idéia de empresa permite exemplificar como se dá a ação do poder disciplinar na sociedade moderna, a sociedade do capital. Nela, os corpos são “fabricados” através de “uma localização que não os implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de relações” (Ibid., p.125). Essa rede de relações se verifica nas instituições que regulam as atividades humanas através de normas, penas e sanções. A disciplina tanto incentiva comportamentos positivos e meritocráticos quanto serve como ferramenta para o adestramento e docilidade dos corpos que ocupam os espaços institucionais. O funcionamento da sociedade capitalista se dá, pois, através da distribuição dos corpos e do controle de suas atividades. As disciplinas escolares são formas representativas da ordem, no que se refere aos saberes escolares, estando envolvidas diretamente com os mecanismos de poder. Estas foram instituídas como um saber necessário para assegurar um estereótipo de cidadão ideal.

Foucault vai nos dizer que “as pessoas sabem o que fazem; elas frequentemente sabem o porquê fazem o que fazem; mas o que elas não sabem é o que faz (causa) aquilo que elas fazem” (DREYFUS; RABINOW, p. 165 apud BLACKER, 2002, p. 187). Assim, sugere-nos que a liberdade está condicionada diretamente com a questão das relações de poder, pois “o poder é uma relação, incitado e intimamente alinhado com a resistência e a liberdade” (PIGNATELLI, 2002, p. 146). A liberdade então surge nesse contexto moderno, como um estado transitório em que “sujeitos individuais ou coletivos têm diante de si um campo de possibilidades de diversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento que podem acontecer” (FOUCAULT, 1995b, p. 244).

Daí surge a questão da liberdade, como uma forma do poder se estabelecer, pois Foucault acredita que “a compreensão que temos de nós mesmos como pessoas capazes de efetuar escolhas livres e autônomas é, ela própria, uma construção que nos permite ser governados” (MARSHALL, 2002, p. 22). Pensando na sociedade moderna, “para ser governável, uma pessoa deve ser alfabetizada” (Ibid., p. 24). Por governo, entendendo “uma forma de atividade dirigida a produzir sujeitos, a moldar, a guiar ou afetar a conduta das pessoas de maneira que elas se tornem pessoas de um certo tipo” (Ibid., p. 29). Sua arte consiste então em “fornecer uma forma de governo para cada um e para todos, mas uma forma que deve individualizar e normalizar” (Ibid., p. 29)

Em comunhão com o poder disciplinar, a liberdade pode ser colocada como um estado do poder agir, pois “sem as relações de poder, quer dizer, sem as táticas e estratégias de resistência e liberdade que elas engendram, o que resta é apenas estado de dominação, cujo excesso pode tornar a vida alheia destituída de valor sob o signo da pura violência, como no caso dos totalitarismos” (ALMEIDA, 2006, p. 157). A auto-regulaçao dos estudantes que mantém um bom comportamento mesmo na ausência do professor é um reflexo dessa ação disciplinar no ambiente escolar. Para Foucault, somos alvos de um poder que cria uma falsa idéia da liberdade, pois fomos, a partir do momento que somos considerados um produto da ação disciplinar, construídos para pensar que somos livres e autônomos e “porque essa mesma construção permitiu o avanço do poder/saber e a subjugação das pessoas como sujeitos a levarem vidas úteis, dóceis e práticas” (Ibid., 2002, p. 31)

A relação de governo do outro implica diretamente na forma como governamos a nós mesmos. A criança deve, num primeiro momento, “ser sujeita à disciplina pedagógica para atender os interesses de sua independência posterior” (PONGRATZ, 2008, p. 41); Portanto, a racionalidade deve defender a tudo o que pretende em relação à liberdade e “ao mesmo tempo legitimar o grau de dominação e disciplina requerido socialmente” (Ibid., p. 42).

Existe sim uma liberdade como condição sem a qual não haveria relações de poder: enquanto houver uma escolha plausível de ser feita, haverá uma relação de poder, moldada por pressupostos políticos que regularão as condutas, para que haja uma escolha a bem de um interesse. “O poder só se exerce em sujeitos potencialmente livres e enquanto estes permanecerem livres” (ALMEIDA, 2006, p. 147). Ser livre, portanto, coloca o homem sobre duas possibilidades, como alvos do poder: a primeira, talvez posta sob uma maior carga emancipadora, como alvo de um governo de si mesmo; a segunda, mas dependente, assegurando o governo dos outros.

Se o poder é geral e engloba a tudo e a todos, pois não há o exterior a ele, uma resistência ao poder buscada como uma solução para uma liberdade “sem restrições” pressupõe uma luta constante por novas formas através de criações de subjetividades, pois a busca de “possibilidades da liberdade através da resistência, rejeitando o quadro possivelmente determinista no qual suas primeiras descrições do poder/saber tinham sido traçadas” (MARSHALL, 2002, p. 29), coloca a liberdade como que se existisse, então, como uma condição essencial para que o poder se estabeleça, pois o poder pode apenas existir onde existe a possibilidade de resistência e, portanto, a obtenção de liberdade (FOUCAULT, 1995b). Assim, a resistência nunca será externa numa relação com o poder, pois “concebido como ação sobre uma ação (como da ordem do governo), o poder sempre pressupõe a possibilidade da resistência, pois se trata de uma relação estabelecida entre pessoas potencialmente livres” (ALMEIDA, 2006, p. 156-7).

Assim é o indivíduo: alvo, sujeito, dócil ao poder; mas ao mesmo tempo seu veículo, agente e instrumento. São objetos e ações, ao mesmo tempo, pois a sua disciplinação depende diretamente de sua vontade e de sua participação ativa; no entanto, possuem sua própria razão e, nesse sentido, “são também intersubjetivamente sujeitados pelo fato de que eles são governados externamente por outros e internamente por suas próprias consciências” (DEACON, 2002, p. 101).

As técnicas de si ou a ética

A idéia trazida aqui é com relação a formas possíveis de se manter fora de um ambiente de dominação, ou tornando-as positivas, já que o próprio poder já as produz para se manter em atividade. Assim, “Foucault pensa que, diante dessa ambigüidade, precisamos observar todos os detalhes, sendo ao mesmo tempo extremamente prudentes e empíricos: só no seu exercício se pode decidir se a relação de poder é boa ou ruim” (ALMEIDA, 2006, p. 158). No entanto, já vimos outrora que não existe, na concepção de Foucault, um exterior ao poder, pois é ele o princípio de funcionamento contemporâneo. Nossa proposta agora é de buscar entendimentos no que se refere à existência de alguma forma para atenuar as investidas da sociedade disciplinar ou uma forma de resistência, pois “o grande desafio que ainda se enfrenta hoje, na perspectiva da genealogia realizada por Foucault, é produzir e reproduzir conhecimentos capazes de se insurgir contra a dominação que as próprias ciências do homem ajudaram a criar e a aperfeiçoar” (MACHADO, 2004, p. 35).

Foucault se remete a “um outro tipo de pedagogia, a um outro tipo de educação: àquela exercida sobre si mesmo, que chamará de subjetivação, contrapondo-a à sujeição, princípio que rege a escola em nossa sociedade” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 10-1). Surge então as técnicas de si ou, como outros poderiam chamar, ética do sujeito, como uma forma de os sujeitos se constituírem numa prática reflexiva consigo mesmo. Há então uma mudança: de uma leitura política focada nos dispositivos e tecnologias do poder, para uma relacionada à ética, às condutas de si, “inventando, assim, novos modos de subjetivação, novos estilos de vida individual, mas também social, para além das objetivações impostas pelas tecnologias de dominação do poder” (ALMEIDA, 2006, p. 151-2).

A disposição dos alunos em círculo, diferente das tradicionais fileiras, “abre a possibilidade de que todo estudante manifeste sua opinião e de que seja ouvido” (GORE, 2002, p. 16), porém, Foucault considera, reforçado por Gore, que as “práticas educacionais libertadoras não têm nenhum efeito garantido” (Ibid., p. 16). Por isso, “o importante não é que se aprenda algo ‘exterior’, um corpo de conhecimentos, mas que se elabore ou reelabore alguma forma de relação reflexiva do ‘educando’ consigo mesmo” (LARROSA, 2002, p. 36).
“A questão não é ir atrás de um princípio fundamental e geral em que se assentaria o poder, mas examinar os agenciamentos em que se cruzam as práticas” (VEIGA-NETO, 2006, p. 24). Nesse sentido, a idéia não é dar questões fechadas como soluções ou para um bloqueio ao poder, mas fornecer propostas, questões abertas que permitam o exercício da dúvida e da crítica. Assim, “a fim de comportar-se apropriadamente, de praticar a liberdade apropriadamente, era necessário cuidar do eu, nao meramente para conhecer o próprio eu, mas também para melhorá-lo, ultrapassá-lo, dominá-lo (MARSHALL, 2002, p. 28).

As práticas de si refletem uma maneira, definida pelo filósofo como conduta, de fiar a si mesmo uma auto-gestão. Com isso “proporá o termo conduta como aquele que mais bem capta o que há de específico nas relações de poder. A conduta pode ser caracterizada pela maneira de conduzir os outros bem como a maneira de se conduzir a si mesmo” (ALMEIDA, 2006, p. 147). Para ele, será um bom governante aquele que souber governar (e bem), a si mesmo. Dessa forma, a reflexão funcionaria como uma ferramenta do indivíduo que, sabendo mais que os demais, colocar-se-á como um gestor de recursos humanos, ou um líder, como prefere o sistema das organizações modernas. No entanto, a noção primeira de sua ontologia do presente não pode ─ e nem há de fato um modo, pelo seu caráter realístico e talvez absolutamente preciso ─ ser descartada: mesmo observando das técnicas do controle de si para constituir-se a si mesmo, cabe-se demarcar a influência dos poderes do ramo das disciplinas, dos controles dos corpos individuais e coletivos, através do poder da norma e de suas sanções. Como nos diz Almeida:

(...) não se deve admitir jamais uma forma incontornável de dominação ou o privilégio absoluto da lei, da norma, da disciplina, do governo, mas, ao contrário, entender que enquanto as relações de poder estiverem presentes em todas as relações humanas (aí incluídas as pedagógicas) teremos certeza de que nelas há pessoas potencialmente capazes de dizer não a qualquer abuso no uso do poder”.(2006, p. 157).

Conclusão

Assim, a ética ou o domínio das técnicas de si podem, talvez, amenizarem os efeitos do poder disciplinar sobre os corpos individuais, entendo a ética do sujeito como uma noção diferente da kantiana, universalista; a de Foucault é focada apenas no sujeito, nas práticas que possui consigo mesmo, na construção de sua própria subjetividade, na sua sujeição per se. “O cuidado de si apareceria como uma conversão ao poder, ou seja, uma forma de controlá-lo” (Ibid., p. 160). Essa é a proposta para uma possível investida contra o poder: uma inspiração foucaultiana caracterizada por uma postura de completa e permanente desconfiança sobre as formas discursivas ou de verdades instituídas, tomadas como naturais; um quadro parecido como o do próprio poder: se ele é constante, a reflexão assim também o deve ser; se é consentido, devemos problematizá-lo; se produz identidades, devemos moldá-las a nossa forma, colocando a vontade individual como parâmetro. A regulação sempre existirá no ambiente pedagógico, mas devemos repensá-las, no âmbito da educação, promovendo da auto-reflexão, pois como afirma Almeida, “o poder definitivamente não é o mal: compreendê-lo assim é desistir da liberdade, pois só há relações de poder onde há liberdade” (2006, p. 157).

Como Foucault nos mostra, ao estudar a Antiguidade greco-romana, “para ser um bom governante é preciso primeiro governar a si próprio” (Ibid., p. 151). Assim, as “técnicas de si ou do eu, formas através das quais o sujeito se auto-constitui enquanto senhor de seus atos, poderiam ser caracterizadas como um exercício de si sobre si mesmo” (Ibid., p. 150).

Nem mesmo o próprio Foucault coloca a sua filosofia e seus diagnósticos como uma verdade pronta e estática. Uma pedagogia crítica de inspiração foucaultiana traz como um dos seus objetivos a reflexão, colocando o indivíduo numa situação de cuidado em não ser em demasia controlado – sendo esta talvez uma possível solução para essa questão – e para tanto, servindo como um contradomínio na ação pedagógica, onde a idéia de liberdade coloca os indivíduos para além dos estados de dominação. Cabe, no entanto, a cautela, pois o poder também possui sua positividade, que para ele está atrelada a um estado de visibilidade: será na própria relação que se definirá o lado produtivo ou não, de sua ação.

Referências bibliográficas

ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. “O pensador de todas as solidões: Michel Foucault, uma biografia intelectual”. Revista Educação - especial Biblioteca do Professor 3: Foucault pensa a Educação. São Paulo, p. 6-15, 1º mar. 2007.

ALMEIDA, F. Q.“Pedagogia Crítica da Educação Física no Jogo das Relações de Poder”. Revista Movimento, Porto Alegre; v. 12, n. 3, p. 141-64, set./dez. 2006.

BLACKER, D. “Foucault e a responsabilidade intelectual”. In: DA SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). O sujeito da Educação, 2002, p. 155-72.

DEACON, R.; Parker, B. “Educação como sujeição e como recusa”. In: DA SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). O sujeito da Educação, 2002, p. 97-110.

FOUCAULT, M. “Os recursos para o bom adestramento”. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 29ª ed. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004, p. 153-72.

FOUCAULT, M. “O sujeito e o poder”. In.: Dreyfus, H.; Rabinow, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Fuorense Universitária, 1995b, p. 231-49.

GORE, J. M. “Foucault e Educação: fascinantes desafios”. In: DA SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). O sujeito da Educação, 2002, p. 9-20.

LARROSA, J. “Tecnologias do Eu e Educação”. In: DA SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). O sujeito da Educação, 2002, p. 35-86.

MACHADO, R. “Duas filosofias das ciências do homem”. In: Calomeni, T. C. B. (Org.). Michel Foucault: entre o murmúrio e a palavra. Campos, RJ: Editora Faculdade de Direito de Campos, 2004, p. 15-37.

MARSHALL, J. D. “Governamentalidade e Educação liberal”. In: DA SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). O sujeito da Educação, 2002, p. 21-34.

PGNATELLI, F. “Que posso fazer? Foucault e a questão da liberdade e da agência docente”. In: DA SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). O sujeito da Educação, 2002, p. 127-54.

PONGRATZ, L. A. “Liberdade e disciplina: transformações na punição pedagógica”. In: Peters, M. A.; Besley, T. e colaboradores. Por que Foucault? Novas diretrizes para a pesquisa educacional. Porto Alegre: Artmed, 2008, p. 40- 53 (cap. 3).

VEIGA-NETO, A. "Dominação, violência, poder e educação escolar em tempos de Império". In: Rago, M.; Veiga-Neto, A. (Orgs.). Figuras de Foucault, Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p. 13-38.

Fonte -Texto integralmente retirado do seguinte endereço:
http://www.efdeportes.com/efd139/etica-e-cuidado-de-si-resistencia-em-foucault.htm

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Alô Realengo, aquele abraço solidário


Por JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE

Não tinha amigos, não batia papo nem contava piada, nunca namorou, jamais lhe deram um cheiro no cangote ou alisaram sua mão, nunca transou, não torcia por time algum, nunca foi ao Maracanã, não xingou juiz de ladrão, de sua garganta jamais saiu um grito apaixonado de gol, não desfilou em qualquer bloco de carnaval. Passava o tempo na internet, em jogos eletrônicos, mas nunca recebeu um aviso no FaceBook solicitando: “me adicione como amigo”.
Esse filme a gente já viu. Ele é americano (mas não só). Surge, agora, uma produção brasileira, um compacto que mistura roteiros das várias versões importadas dos Estados Unidos. Aqui o cenário foi uma escola em Realengo, no subúrbio carioca. O personagem principal invadiu a escola, executou friamente 12 alunos e feriu mais dez. Foram importados dos Estados Unidos seu nome - Wellington - e os dois apelidos - Sherman e depois Suingue, botados pelos colegas.
O primeiro foi inspirado na figura nerd de Chuck Sherman, “the Sherminator”, do filme American Pie. O segundo, no seu jeito desajeitado de caminhar, causado por uma perna ligeiramente menor que a outra, que produz um balanço, um “suingue”, no dizer debochado dos colegas. Na versão americana de Ohio, o aluno H. Coon, que entrou na escola e atirou em quatro colegas antes de se suicidar, também mancava e ficou conhecido pelo apelido de Deixa-que-eu-chuto.
A história de Wellington começa a ser contada, aos fragmentos, por colegas, vizinhos e irmãos adotivos entrevistados pela mídia, com registros esparsos sobre seu nascimento e sua passagem pelo mundo da família, da escola e do trabalho. Aliás, ele não nasceu, foi excluído do ventre de sua mãe - uma moradora de rua com problemas mentais.
Precisa de carinho
Na escola, usava calças com cós acima da cintura e meias até os joelhos. A menina mais bonita da turma se jogava em cima dele, fingindo assediá-lo, só pra sacanear. Ganhou fama de homossexual. Não reagia às agressões. À semelhança do estudante de origem sul coreana, nos Estados Unidos, Cho Seung-hui, que matou 32 pessoas na Universidade de Virginia e deixou uma carta dizendo ter sido discriminado como um bicho: “Eu morro como Jesus Cristo, para inspirar gerações de pessoas fracas e indefesas”.
Seguindo o modelo americano, Wellington também escreveu uma carta, rogando para que na sua vinda “Jesus me desperte do sono da morte”. Nela, deixou um testamento, legando sua casa para alguma instituição encarregada de cuidar dos animais abandonados, “pois os animais são seres muito desprezados e precisam muito mais de proteção e carinho do que os seres humanos que possuem a vantagem de poder se comunicar”.
Wellington não tinha o poder de se comunicar. “Mal ouvíamos a voz dele, vivia no mundo dele”, contou uma vizinha. “Era muito calado, muito fechado e a galera pegava muito no pé dele, mas não a ponto de ele fazer isso”, disse seu ex-colega Bruno Linhares, 23 anos, se referindo ao massacre. Precisava de proteção e carinho?
Outros colegas admitiram que o rapaz foi vítima de “bullying” na Escola Municipal Tasso da Silveira, onde estudou de 1999 a 2002, quando sofreu constantes intimidações. “Além de tudo, ele ainda tirava notas baixas”, completou Bruno. No 8º ano, ficou em recuperação em quase todas as matérias.
“A gente chorou muito pensando que Wellington matou aquelas 12 crianças em represália pelo que aconteceu com ele quando nós estudávamos juntos”, contou Thiago da Cruz, outro ex-colega, que usou o adjetivo assustador para se referir ao bullying e à chacota a que Wellington foi submetido. Em entrevista à Folha, reconheceu que não suspeitava do dano que cometeram e acrescentou chorando: “Não era para ninguém ter pago por uma coisa que nós fizemos”.
“Ele era tímido e calado”, confirmou ao Globo o gerente da fábrica de alimentos Rica, sediada em Jacarepaguá, adiantando que Wellington permaneceu silencioso o tempo todo numa dinâmica de grupo realizada na firma, onde trabalhou durante dois anos como auxiliar de almoxarifado. A indústria, que abate 170 mil aves por dia e aloja cerca de 46 milhões de pintos, considerou “baixa” a produtividade dele.
Por isso, Wellington Menezes de Oliveira, 23 anos, foi excluído do trabalho, demitido em agosto de 2010. Ficou desempregado. Depois da morte da mãe adotiva, passou a morar sozinho, mergulhado na mais extrema solidão. Não foi apurado ainda com que recursos ele sobreviveu nos últimos meses.
Nessa quinta feira, 7 de abril, vestido de preto e com duas armas, como o menino de Ohio, Wellington voltou ao local do crime -a escola onde estudou- para acabar com aquilo que o molestara. Incorporou o apelido de “The Sherminator”, encurralou e executou 12 crianças, feriu outras 13, quase todas mulheres, num banho de sangue nunca visto numa escola brasileira. Depois, ferido, se suicidou com um tiro na boca.
Escola de merda
Errou o alvo. Atirou no que viu e matou o que não viu. Ceifou os sonhos de Larissa,14 anos, que queria ser modelo; de Bianca, a gêmea de 13 anos, que gostava de navegar na internet; de Mariana, 12 anos, o xodó da família, que adorava tirar fotografias; de Géssica, 15 anos, uma menina alegre que havia feito planos de estudar na Marinha; de Igor que gostava de futebol, torcia pelo Flamengo e jogava na Escolinha do Vasco. E de tantas outras adolescentes sonhadores.
“Ela morreu naquela escola de merda”, gritava dentro do hospital dona Suely, mãe de Géssica. Familiares e amigos ficaram imersos no desespero, na revolta, na dor e na perplexidade. Como foi possível isso acontecer? Podíamos ter evitado? Como?
“Poderia ter sido um de nós, um de nossos filhos”, escreveu uma leitora do Globo, sem atentar que foram 12 de nós, 12 de nossos filhos. Por isso é que o Brasil inteiro se sentiu ferido com os tiros disparados por Wellington, que atingiu a todos nós, embora com intensidade diferente.
O presidente do Senado, José Sarney, sempre “brilhante”, sugeriu que “o governo deve, a partir desse episódio, reforçar a segurança dentro das escolas brasileiras e até mesmo incluir no currículo um item chamado segurança”. Outras sugestões foram feitas: instalação de câmeras, detectores de metal, catracas, guaritas, porteiros armados. Por que não canhões? Ou fossos ao redor como nos castelos feudais? Isolar a escola da comunidade onde está encravada é alguma garantia de segurança?
A prefeitura do Rio chegou a iniciar, em novembro do ano passado, a contratação de porteiros para as escolas, mas houve denúncias de que as vagas estavam sendo loteadas através de indicação política, naquele modelo que o Sarney gosta, usa e abusa. Suspenderam as contratações e abriram uma CPI.
O governador Sérgio Cabral, ainda desorientado, diagnosticou o assassino como “psicopata”, como um “animal”, reforçando as palavras de Sarney. para quem Wellington é “um fanático”, “um fronteiriço, possesso -esta é a palavra - entre a loucura e a maldade”. O diagnóstico dos dois configura “exercício ilegal da profissão”.
Quem produziu Wellington? Por que um espetáculo tão macabro, no qual todos somos perdedores? Se não procurarmos responder essa pergunta, outros Wellingtons surgirão, tirando o gostinho dos Bolsonaros por seu linchamento, já que se suicidou. O diabo é que estamos todos perplexos, confusos. Quem diz que sabe o porquê do acontecido, sinalizando um único fator como a causa de tudo, comete um erro. Uma certeza nós temos: nem o presidente do Senado nem o governador sabem o que dizem.
Desconfio que além das pessoas tocadas de perto pela tragédia, precisamos todos, os 180 milhões de brasileiros, de assistência psicológica. No meio de tanta dor, não temos ainda a grandeza sequer de dizer: Descansa em paz, Wellington. Enquanto isso, só nos resta fazer como os familiares das crianças assassinadas e os moradores de Realengo que nesse sábado deram um enorme abraço na Escola Tasso da Silveira.
Alô, Alô, Realengo, aquele abraço solidário e aquele cheiro no cangote que Wellington nunca recebeu, levando consigo três fiapos de humanidade: o beijo na testa da professora de literatura, a preocupação com os animais desamparados e a retirada de um aluno de sua mira: “Fica frio, gordinho, que eu não vou te matar”.

O professor José Ribamar Bessa Freire coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO).

domingo, 10 de abril de 2011

Bauman, a singularidade e a diluição do mundo

- "Amar o próximo como amamos a nós mesmos significaria então respeitar a singularidade de cada um - o valor de nossas diferenças, que enriquecem o mundo que habitamos em conjunto e assim o tornam um lugar mais fascinante e agradável, aumentando a cornucópia de suas promessas."

- "Os tipos de preocupação que se condensam em impulsos segregacionistas/exclusivistas levam inexoravelmente a guerras pelo espaço urbano."

- "Estamos destinados a viver sempre na vizinhança e na companhia de outros."

- "O valor, o mais precioso dos valores humanos, o atributo sine qua non de humanidade, é uma vida de dignidade, não a sobrevivência a qualquer custo."

- "... protegendo a dignidade com que cada ser humano nasce dos gatunos e falsários que tramam roubá-la ou desvirtuá-la e mutilá-la. E você começaria pelo trabalho perpétuo de protegê-la enquanto é tempo, durante a infância dessa dignidade. Tentaria trancar o estábulo antes que o cavalo fugisse ou fosse roubado. Uma das formas de fazê-lo, aparentemente a mais razoável, é abrigar as crianças dos eflúvios venenosos de um mundo infectado e corrompido pela humilhação e a indignidade humanas."

- "A sociedade de consumo consegue tornar permanente a insatisfação."

- "O capitalismo é um sistema parasitário. Como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento."

- "Não me considero um pessimista. Mas também não sou um otimista. Quem são os otimistas? As pessoas que acham que este nosso mundo é o melhor possível. E os pessimistas? Pessoas que suspeitam que os otimistas possam estar certos..."

- "Nós somos responsáveis pelo outro, estando atento a isto ou não, desejando ou não, torcendo positivamente ou indo contra, pela simples razão de que, em nosso mundo globalizado, tudo o que fazemos (ou deixamos de fazer) tem impacto na vida de todo mundo, e tudo o que as pessoas fazem (ou se privam de fazer) acaba afetando nossas vidas."

- "Bulimia e anorexia são as reações patológicas mais comuns para as contradições e os desafios típicos de nosso modo de vida, em particular, dos aspectos egocêntricos e consumistas."

- "Quando se trata da arte da vida, somos todos bricoleurs (um termo usado por Claude Lévi-Strauss), pessoas que seguem modelos de suas cabeças, montam/colam/ligam 'estruturas' com os materiais que estão a seu alcance."

- “A conquista da natureza produziu mais desperdício do que felicidade humana.”

- “Quando você pergunta a si mesmo se é feliz, você deixa de sê-lo… Os antigos provavelmente suspeitavam disso, razão pela qual sugeriam que, sem trabalho duro, a vida não ofereceria nada que a tornasse valiosa. Dois milênios depois, a sugestão não parece ter perdido a atualidade.”


Fonte da imagem: a-gi-ta.blogspot.com
Fonte do texto:  

Nenhuma escola é uma ilha

Publicado em 08/04/2011

Por Ana Flávia C. Ramos

Fonte: Blog TABNAREDE, em 08/4/2011:
Retirado do blog:

Tragédias como a ocorrida na Escola Municipal Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro, sempre provocam grande comoção pública, indignação e, obviamente, tristeza pelas muitas crianças perdidas no atentado. Além desses sentimentos, tais fatos provocam também um grande tsunami de “especialistas”, mobilizados em velocidade estonteante pela mídia, para dar laudos e explicações quase matemáticas sobre as motivações do assassino. O atirador Wellington Menezes de Oliveira, segundo as informações desses “cientistas da tragédia” (que variam de “criminólogos” a policiais militares), era tímido, solitário, filho adotivo, “usuário” constante do computador (a “droga” dos tempos modernos segundo os “analistas”), ateu, islâmico, fanático, fundamentalista, portador do vírus da AIDS e, provavelmente, vítima de bullying na escola.

Certamente não há como contestar que todo ato humano, e por isso histórico, se explica a partir da análise de uma cadeia de relações complexas. Como digo aos alunos, nada tem resposta simples e direta. Entretanto, o tipo de questão levantada para entender o terrível ato de Wellington Menezes de Oliveira diz muito mais sobre nós mesmos do que sobre ele. Todos os nossos preconceitos estão embutidos nessas respostas. De fato, não sabemos, e talvez nunca saibamos, por que exatamente ele atirou contra cada uma das crianças (em sua maioria meninas), assim como não sabemos sobre as reais motivações dos muitos atentados como esse, ocorridos em países como Estados Unidos e Dinamarca. Mesmo depois de tudo o que se discutiu, ainda é difícil, por exemplo, explicar Columbine (abril de 1999).

Uma das coisas que mais tem me chamado a atenção é a recorrência da explicação que elege o bullying escolar como um dos fatores que podem desencadear esse tipo de ato violento. A explicação não é nova, Columbine é prova disso. Há mais de dez anos, dois meninos entram em uma escola, de capa preta (quase como em um filme hollywoodiano) e atiram em seus colegas. “Especialistas”, gringos agora, se apressam em dizer as razões: divórcio nas famílias, videogames, filmes violentos, Marilyn Manson, porte de armas facilitado e, como não poderia faltar, bullying na escola.

É inegável que o bullying é uma realidade. É indiscutível que ele é extremamente nocivo e doloroso aos alunos que sofrem com ele. É evidente que há urgência em iniciar um debate para saber como sanar o problema. Mas a pergunta que fica é: o que de fato é o bullying? Ele é um sinal (histórico) de que? E ainda mais: ele é um problema restrito à escola? Por que os alunos são tão cruéis com seus colegas?

Michael Moore, cineasta norte-americano explosivo, tentou dar a sua interpretação para o atentado de Columbine com o documentário Bowling for Columbine (2002). Moore, ao invés de repetir os clichês da mídia, foi implacável na destruição do senso comum das justificativas moralistas para o evento. Item por item, desde a desagregação da família, Manson, até a polêmica questão do porte de armas foram desconstruídos em sua narrativa. O foco centrou-se em respostas muito mais interessantes, localizadas não nos dois jovens assassinos, mas na sociedade americana. O imperialismo militarista dos Estados Unidos, a ação violenta em outros países, a política do medo (incentivada pelo Estado e pela grande mídia), que reforça e superestima dados sobre a violência urbana, sobre o fim de mundo, e, principalmente, a intolerância com todo tipo de diferença. Racismo, preconceito, homofobia, conflitos religiosos e luta de classes são só alguns dos ingredientes do caldeirão de ódios em que se transformou a sociedade americana.

Como crescer no Colorado, na “livre” América, e não ser conspurcado por esses valores? Como não idolatrar armas e achar que elas são um meio prático de solucionar problemas? Como viver imune a uma sociedade individualista, capitalista, que divide os seus cidadãos o tempo todo em “winners” e “losers”? E mais ainda, como não se deixar levar por uma sociedade que até hoje não consegue lidar com a diferença entre brancos e negros? Uma sociedade que até os anos 1960 não oferecia direitos, oportunidades e tratamentos iguais a todos os seus cidadãos, tem o que para oferecer ao pensamento dos estudantes? Os americanos, ainda hoje, estão preparados para o respeito à diferença? A relação que eles mantêm com os muçulmanos diz muito. Definitivamente a liberdade e o respeito ainda não se transformaram em uma unanimidade por lá.

É claro que mesmo Moore não chega a dar respostas definitivas sobre a questão. E mais ainda: é evidente que ele considera a forma pela qual a instituição ESCOLA trata seus alunos (hierarquias e classificações hostis), ignorando muitas vezes o bullying, tem sua responsabilidade no massacre. Assim como é nítido que a venda facilitada de armas e munição são coadjuvantes importantes da história. Mas Moore foi corajoso ao lançar em cada um dos americanos a responsabilidade da tragédia e discutir aquilo que ninguém teve coragem (ou má fé) de fazer. Nem a mídia, nem o governo, nem a sociedade. É preciso encarar os “monstros”, com franqueza, e não apenas “satanizar” o ambiente escolar, para dar algum significado para esses eventos.

Ontem no Terra Magazine o antropólogo Roberto Albergaria afirmou que a mídia e a sociedade brasileira desejavam o impossível: explicações para um “desvario sem significado”. Segundo ele, o que Wellington Menezes praticou foi o que os estudos franceses chamam de “violência pós-moderna”, caracterizada por uma ruptura irracional, sem explicação. De fato, talvez tenha sido um “ato irracional”, fruto de um momento de insanidade. Mas acredito que esse tipo de resposta não nos ajuda a resolver coisas importantes sobre nós mesmos. A tragédia no Realengo, a meu ver, pode e deve ser início de um debate importante sobre a nossa sociedade.

A tragédia na escola do Rio de Janeiro acontece num contexto bastante relevante. Em outubro de 2009, Geyse Arruda foi hostilizada por seus colegas de faculdade porque, segundo eles, ela não sabia se vestir de modo “apropriado” para freqüentar as aulas. Em junho de 2010, Bruno, goleiro do Flamengo, é suspeito de matar a ex-namorada, Elisa Samudio, por não querer pagar pensão ao filho. Suposta garota de programa, Samudio foi hostilizada na opinião de muitos brasileiros. Após rompimento, Mizael Bispo, inconformado, mata sua ex-namorada Mércia Nakashima em maio de 2010. Em novembro de 2010, grupos de jovens agridem homossexuais na Avenida Paulista, enquanto Mayara Petruso incita o assassinato de nordestinos pelo Twitter. E mais recentemente, em cadeia nacional, Jair Bolsonaro faz discurso de ódio contra homossexuais e negros. Tudo isso instigado e complementado pelo discurso intolerante, preconceituoso, conservador e mentiroso do candidato José Serra à presidência da República. A mídia? Estava ao lado de Serra, corroborando em suas artimanhas, reforçando preconceitos contra Dilma, contra as mulheres e contra os tantos mais “adversários” do candidato tucano.

Wellington matou mais meninas na escola carioca. Se, por um lado, jamais saberemos as reais razões que o fizeram agir dessa forma, por outro sabemos o quanto a sociedade brasileira tem sido, no mínimo, indulgente com atos de intolerância, machismo, ódio e preconceito contra mulheres, negros e homossexuais. Se não há uma ligação direta entre esses diversos acontecimentos, eles pelo menos nos fazem pensar o quanto vale a vida de alguém em um contexto de tantos ódios? Quantas mulheres morrerão hoje vítimas do machismo? Quantos gays sofreram violência física? Quantos negros sentirão declaradamente o ódio racial que impregna o nosso país? O que é o bullying se não o prolongamento para a escola desse tipo de mentalidade? Quantas pessoas apoiaram as declarações de ódio de Bolsonaro via Facebook? Aquilo que acontece no ambiente escolar nada mais é do que um microcosmo do que a sociedade elege como valores primordiais. E o Brasil, que por tanto tempo negou a “pecha” de racista e preconceituoso, vê sua máscara cair.

Não adianta culpar o bullying, achando que ele é um problema de jovens, um problema das escolas. Não adiante grades e detectores de metal nas entradas ou a proibição da venda de armas. Como professora, sei que o que os alunos reproduzem em sala nada mais é do que ouviram da boca de seus pais ou na mídia. Não adiante pedir paz e tolerância no colégio enquanto a mídia e a sociedade fazem outra coisa. Na escola, o problema do bullying é tratado como algo independente da realidade política, econômica e social do país. Mas dá pra separar tudo isso? Dá pra colocar a questão só em “valores” dos adolescentes, da influência do malvado do computador ou dos videogames? Ou é suficiente chamar o ato de Wellington de uma “violência pós-moderna” sem explicação? Das muitas agressões cotidianas, a da escola do Realengo é apenas uma demonstração da potencialidade de nossos ódios. A única coisa que me pergunto é: teremos a coragem de fazer esse tipo de discussão?

*Ana Flávia C. Ramos, historiadora, pesquisadora colaboradora do departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.

sábado, 9 de abril de 2011

Cálice - Chico Buarque

terça-feira, 5 de abril de 2011

Cinco notas sobre o devir...

                                                      Pipas (Cândido Portinari)

Jorge Bichuetti

1 O devir é o vir a ser... Um vir a ser novo, diferente, inusitado... É a fonte e a manifestação da impermanência...

2. Singularizante e rizomático (multiplicidades).... Ele emerge intempestivo, não-causado pelo determinismo; porém, agenciados nos "entres" e "es", nos espaços lisos e na vida infatigável e vitalizante, andarilha, no caminho que se dá entre as experimentações do que pode um corpo e os voos da arte que percute a vida , atualizando o por-vir...

3. O devir é uma atualização revolucionária da realteridade, das virtualidades heterodoxas, da vida de rizoma que não emergiu pela inibição, repressão e castração da identidade e da permanência - vida de repetições...

4. O devir é sempre minoritário... Não é composição, formatação e materialização das forças molares dominantes; é fruto das linhas, fluxos e pulsações minoritárias que numa guerra de guerrilha, imperceptível, emerge como o novo intempestivo.

5. Todos os devires dependem do devir criança... pois este dá o brincar, o outrar-se, o movimento e um universo virulento surreal... Contudo, o devir criança não se sustenta nem mantém sua fecundidade, alijado do devir animal... primitivo, força guerrilheira, impetuosidade e ousadia para as aventuras do novo. E o nosso mundo encontra-se na sua realidade bruta e cruel, fálica, numa encruzilhada onde a utopia e novo não se realização sem o devir mulher, ternura e suavidade...

domingo, 3 de abril de 2011

Modernidade líquida




Um passeio com Bauman


Bauman, um dos maiores pensadores e sociólogos da atualidade, vem por meio de seus estudos situar tão bem a humanidade nos seus referenciais de Modernidade e Pós-Modernidade, respectivamente atribuindo a elas as metáforas “modernidade sólida” e “modernidade líquida”. A primeira estava ligada à ordem, e a segunda, ao caos. A partir dele, não dá mais para se pensar o mundo contemporâneo sem o entendimento do que essa oposição significa e das suas consequências que passam a operar “ingenuamente” em nossa sociedade.

O mundo moderno ou modernidade sólida se legitimava pela imposição da ordem, pela limpeza e pela beleza. Havia uma intensa correspondência discursiva entre a semântica das palavras e a contextualização da prática de vida. Era preciso nomear, classificar, ordenar, dar sentido a tudo, e aquilo que não passasse por essa lógica era considerado “estranho”, “diferente”, “estrangeiro”, e precisava ser eliminado ou segregado do convívio social. Esse período, por assim dizer, ostentava uma única verdade, que gerava monotonia, regularidade e era absolutamente previsível. Racionalmente, isso significava encaixar a humanidade num projeto de mundo civilizado moderno paradigmático, pleno de certezas finitas e de “total” segurança. A ordem estava instaurada e o Estado “jardineiro” (conforme afirma Bauman) tinha de encarregar-se de mantê-la sempre presente, reconhecendo apenas esse tipo de organização de vida. Um mundo com fronteiras, que necessitava de vigilância constante (aquele momento do panóptico, que Michel Foucault explica em sua obra Vigiar e Punir). Obviamente, o mundo da modernidade sólida enfrentava embates infindáveis pela manutenção dessa ordem, engendrando, segundo nos revela Bauman, ambivalências que seriam incapazes de serem resolvidas, pois não existia a possibilidade de relativização da verdade. Portanto, a modernidade sólida foi um contexto de exclusões, de totalitarismos, de barbaridades, onde muitas vidas foram ceifadas por se constituírem um imenso refugo, um “lixo humano”, as “ervas daninhas” que teriam de ser retiradas a fim de não proliferarem e destruírem o “jardim”, quebrando o seu equilíbrio ético e estético.

Por outro lado, com as evoluções econômica, científica, tecnológica, em face à globalização, ao enfraquecimento político do Estado, à exaltação do consumo e à incapacidade histórica de dar conta dos paradoxos originados pelas verdades solidificadas e cimentadas nas instituições sociais e nas formas de viver da modernidade sólida, uma outra ordem social se instaurou como uma nova condição existencial humana, sendo o reverso da ordem normatizada, produzindo o mundo das dúvidas e incertezas, quebrando a perspectiva de linearidade e originando a imprevisibilidade em todos os setores da vida pós-moderna ou da modernidade líquida. A modernidade líquida insere-se no atual contexto como surgida da conseqüência de forças ambivalentes da modernidade sólida. Forças ambivalentes são forças contraditórias e contingentes. Forças que se contrapõem à perfeição, à segurança alcançada anteriormente pela previsibilidade e ao domínio sobre o tempo, o espaço e os padrões de comportamento. Segundo Bauman, a ambivalência tanto pode ser uma luta autodestrutiva quanto autopropulsora, porque, no último caso, operando em vários movimentos e em vários espaços, ela põe fim à mesmice e possibilita ao homem vivenciar um diferente sentido para a sua existência, sendo ele obrigado, com isso, a superar atitudes pacíficas de dominação e abandonar convicções cristalizadas, para entender a efemeridade das coisas, a fragilidade das relações interpessoais e a liquidez da vida.

Segundo Bauman, “as certezas da modernidade sólida se foram, e agora a única certeza são as incertezas”. Na modernidade líquida, tudo passa, se dissolve, se desmaterializa, pois vivemos a era do instantâneo, da rapidez tecnológica, da efemeridade, do líquido que escorre pelos dedos. Não estamos mais ligados e nem queremos estar ligados à rotina, não conseguimos nos manter da mesma forma por muito tempo, é um interminável constante – inconstante. Do panóptico passamos ao sinóptico. Antes poucos vigiavam muitos, e hoje muitos vigiam poucos. É o caso das celebridades (que na modernidade líquida substituem os “heróis” da modernidade sólida), do Big Brother, pois a pós-modernidade é também a Sociedade do Espetáculo. Guy Debord foi um visionário para sua época, quando explicava o funcionamento da espetacularização da vida. Na Sociedade do Espetáculo, o homem é monitorado por algo que ele mesmo criou. O espetáculo tornou-se uma ‘religião’, pois ele tem a autoridade de uma instituição, exercendo poder e domínio sobre os homens. Com o Estado em descrédito e submisso ao poder econômico, quem rege as nossas vidas na modernidade líquida é o consumo. Temos uma existência massificada e manipulada pela mídia, que impõe ao ser humano cada vez mais o desejo infinito de “ter”, uma perversão econômica que classifica a importância das pessoas pelo que elas carregam no carrinho do supermercado, pela grife que usam, pelo bairro onde moram, etc. Quem está destituído desse valor é descartado de poder (ele se vê destituído de poder, porque desconhece o poder que tem), assim como as mercadorias são, formando verdadeiros “lixões humanos” nas periferias das grandes cidades. Esses despossuídos de si,  também as pessoas em geral que vivem uma vida líquida numa época líquida, não têm o mínimo de segurança, projetam-se através do espetáculo, vivem o espetáculo a ponto de não mais saber a diferença entre o que é real e virtual. Tudo é extremamente instantâneo e instável, manipulado e manipulável.

Bauman é fascinante, pois ele pensa a sociedade como um todo, preocupa-se com a conservação ambiental, com a energia nuclear, com a manutenção da vida no planeta. Mas, em meio às moléculas frouxas da modernidade líquida e a falsificação da vida comum da sociedade do espetáculo, não adianta mais insistir nos padrões e regras da modernidade sólida. É utopia insistir na construção de uma família linear, na idéia distante de um “casamento para sempre”, de uma “educação para sempre”, com seus conceitos engessados, pois nada mais dura "para sempre", as incertezas estão potencializadas. A sociedade espetáculo-líquida é a sociedade do movimento em ritmo frenético, do inconstante infindável, afinal já não conseguimos mais tolerar o que dura, não sabemos mais fazer com que o tédio dê frutos. Cabe a nós, que vivemos na modernidade líquida, tentarmos achar saídas para essa realidade que se apresenta imperativa em nossas vidas e à sobrevivência humana na Terra.

Tânia Marques
Texto escrito por mim em 03 de abril de 2011, como síntese do Seminário Bauman I, realizado na UFRGS.

Fonte da imagem:
confabulandoosurreal.blogspot.com