por Helen Lopes de Sousa
Segundo o ensaísta Hans Magnus Enzensberger, ‘o homem é o único primata que planeja o extermínio dentro de sua própria espécie e o executa entusiasticamente e em grandes dimensões’. Já os filósofos Gilles Deleuze e Feliz Guattari definiram a ‘máquina de guerra’ como ‘exterior ao aparelho de estado’. Fica a pergunta: como caracterizar o atual estado de coisas? Como definir as centenas de assassinatos de camponeses no Brasil atual? Como parar esta máquina de guerra que funciona em silêncio? O noticiário frequente da imprensa revela a vulnerabilidade e insegurança que vivem os milhares de trabalhadores rurais do país. Não existe uma política séria de enfrentamento do problema. De quem é a culpa?
O assassinato é sempre culpa do ‘outro’. Ninguém se arvora em querer partilhar com os assassinatos. O assassinato de camponeses, ativistas, religiosos é um tipo de latifúndio improdutivo que ninguém quer dividir. As mortes dão à sensação de que algo aconteceu, quando nada parece ter acontecido. Trata-se de uma coisa que sempre esteve presente em nossa tosca sociabilidade, algo que acontece sem parar. Uma máquina sangrenta e silenciosa. No Brasil, assassinato de trabalhadores rurais cumpre sua função nos rituais antigos de sacrifícios, servem para nos purificar. Diante das notícias todos se indignam, lamentam, ficam mais ‘bonzinhos’.
Crueldade
A CNBB torna-se santificada... Os políticos se mostram consternados... Os movimentos sociais correm com as caras compungidas e seguram os caixões como se fossem os proprietários privados da dor. Os assassinatos de camponeses têm a vantagem de revelar a inutilidade do nosso clamor. Nosso clamor não está nos assassinatos. O campo não é o mundo das idéias. Lá, o mundo é sangrento e cruel. Portanto, o assassinato é uma maneira eucarística do nosso clamor. Devoramos aqueles corpos como devoramos um prato de chambarí. O assassinato é iluminista, uma aula de vida, melhor, de morte.
Fato comum
Os assassinados/assassinos são mais profundos do que nós. Nós falamos, eles estão atolados até o pescoço na escrotidão do sangue e da merda fétida. Eles nos limpam e nos aliviam. Graças a Deus, não estamos lá. Graças a Deus, podemos-nos ‘injuriar’, nos ‘indignar’. Os assassinos cumprem as ordens invisíveis advindas das mais variadas partes: dos fazendeiros, dos políticos, dos juízes, da lógica colonialista e escravagista e secular. Para eles não existem assassinatos, muito menos assassinos, trata-se apenas de mais um dia comum e corriqueiro e agitado de quem sobrevive no inferno. Os assassinos são nossos enviados especiais, nossa tropa de elite. Os assassinos (desde Chico Mendes, Dorothy Stang, dos 19 sem-terra etc.) são nossas vanguardas, nossos guardas. Fica a sensação de que ‘bem’ e ‘mal’ se misturaram numa massa sangrenta. O país fica chocado, indignado, mas ninguém sabe da verdade. É como se todas as pessoas fossem assassinas e vítimas simultaneamente.
Destino
Os assassinos deixam entrever a síntese do que é o Brasil. Eles agem enquanto os mantenedores da política de extermínio, da nova ordem mundial. A culpa é sempre da vítima. Na verdade, ninguém tem o direito da escolha: nem morto, nem matador. Os incontáveis assassinatos de camponeses servem enquanto coisa útil, porque aprendemos mais sobre o Brasil... Aprendemos muito sobre nosso destino escroto, sobre as reformas que a democracia não quer fazer... Aprendemos que reforma agrária é discurso vazio em momentos de campanha eleitoreira... Aprendemos que a morte é coisa simples e banal... Aprendemos com os assassinatos sobre o oportunismo dos bons.
Culpa
Com os assassinatos de camponeses aumentaram o patrulhamento sobre qualquer debate que discorde da reforma agrária clássica dos sem-terra. Debater sobre as questões da agroindústria e da produção de alimento é ser visto como representante do ‘neoliberalismo de direita’. Os assassinatos de trabalhadores rurais fazem o governo reconhecer um erro político para não cometer um erro político.
Os intelectuais, por sua vez, adoram uma tragédia figée, em galantine, uma tragédia em conserva. Preferimos as tragédias simbólicas. Uma miséria boa e interpretativa. A tragédia e a miséria tinham uma função social: aplacar nossa consciência. Antes, a tragédia existia enquanto mera figurante, agora, ela quer ser coadjuvante principal. Os assassinatos nos revelam como o humanismo é pouco, diminuto.
O assassinato mostra que os fatos correm mais velozes do que as interpretações, do que nossa piedade e condolências hermenêuticas que não explicam nada. Vejam as decisões sublime do tribunal de justiça do Pará sobre Eldorado do Carajás: ‘a culpa foi das vítimas!’ foram 19 culpados. Por fim, os assassinatos demonstram que uma solução para o campo não emociona ninguém, que não estamos suficientemente preparados para realizá-la. Não gera votos, essa é a verdade.
FONTE: Jornal Primeira Página
http://www.primeirapagina-to.com.br/noticia.php?l=b211bd91d7193df336c3300a51e308c7
Ed. Nº 984, Palmas-TO, 19 a 25 de junho de 2011
O assassinato é sempre culpa do ‘outro’. Ninguém se arvora em querer partilhar com os assassinatos. O assassinato de camponeses, ativistas, religiosos é um tipo de latifúndio improdutivo que ninguém quer dividir. As mortes dão à sensação de que algo aconteceu, quando nada parece ter acontecido. Trata-se de uma coisa que sempre esteve presente em nossa tosca sociabilidade, algo que acontece sem parar. Uma máquina sangrenta e silenciosa. No Brasil, assassinato de trabalhadores rurais cumpre sua função nos rituais antigos de sacrifícios, servem para nos purificar. Diante das notícias todos se indignam, lamentam, ficam mais ‘bonzinhos’.
Crueldade
A CNBB torna-se santificada... Os políticos se mostram consternados... Os movimentos sociais correm com as caras compungidas e seguram os caixões como se fossem os proprietários privados da dor. Os assassinatos de camponeses têm a vantagem de revelar a inutilidade do nosso clamor. Nosso clamor não está nos assassinatos. O campo não é o mundo das idéias. Lá, o mundo é sangrento e cruel. Portanto, o assassinato é uma maneira eucarística do nosso clamor. Devoramos aqueles corpos como devoramos um prato de chambarí. O assassinato é iluminista, uma aula de vida, melhor, de morte.
Fato comum
Os assassinados/assassinos são mais profundos do que nós. Nós falamos, eles estão atolados até o pescoço na escrotidão do sangue e da merda fétida. Eles nos limpam e nos aliviam. Graças a Deus, não estamos lá. Graças a Deus, podemos-nos ‘injuriar’, nos ‘indignar’. Os assassinos cumprem as ordens invisíveis advindas das mais variadas partes: dos fazendeiros, dos políticos, dos juízes, da lógica colonialista e escravagista e secular. Para eles não existem assassinatos, muito menos assassinos, trata-se apenas de mais um dia comum e corriqueiro e agitado de quem sobrevive no inferno. Os assassinos são nossos enviados especiais, nossa tropa de elite. Os assassinos (desde Chico Mendes, Dorothy Stang, dos 19 sem-terra etc.) são nossas vanguardas, nossos guardas. Fica a sensação de que ‘bem’ e ‘mal’ se misturaram numa massa sangrenta. O país fica chocado, indignado, mas ninguém sabe da verdade. É como se todas as pessoas fossem assassinas e vítimas simultaneamente.
Destino
Os assassinos deixam entrever a síntese do que é o Brasil. Eles agem enquanto os mantenedores da política de extermínio, da nova ordem mundial. A culpa é sempre da vítima. Na verdade, ninguém tem o direito da escolha: nem morto, nem matador. Os incontáveis assassinatos de camponeses servem enquanto coisa útil, porque aprendemos mais sobre o Brasil... Aprendemos muito sobre nosso destino escroto, sobre as reformas que a democracia não quer fazer... Aprendemos que reforma agrária é discurso vazio em momentos de campanha eleitoreira... Aprendemos que a morte é coisa simples e banal... Aprendemos com os assassinatos sobre o oportunismo dos bons.
Culpa
Com os assassinatos de camponeses aumentaram o patrulhamento sobre qualquer debate que discorde da reforma agrária clássica dos sem-terra. Debater sobre as questões da agroindústria e da produção de alimento é ser visto como representante do ‘neoliberalismo de direita’. Os assassinatos de trabalhadores rurais fazem o governo reconhecer um erro político para não cometer um erro político.
Os intelectuais, por sua vez, adoram uma tragédia figée, em galantine, uma tragédia em conserva. Preferimos as tragédias simbólicas. Uma miséria boa e interpretativa. A tragédia e a miséria tinham uma função social: aplacar nossa consciência. Antes, a tragédia existia enquanto mera figurante, agora, ela quer ser coadjuvante principal. Os assassinatos nos revelam como o humanismo é pouco, diminuto.
O assassinato mostra que os fatos correm mais velozes do que as interpretações, do que nossa piedade e condolências hermenêuticas que não explicam nada. Vejam as decisões sublime do tribunal de justiça do Pará sobre Eldorado do Carajás: ‘a culpa foi das vítimas!’ foram 19 culpados. Por fim, os assassinatos demonstram que uma solução para o campo não emociona ninguém, que não estamos suficientemente preparados para realizá-la. Não gera votos, essa é a verdade.
FONTE: Jornal Primeira Página
http://www.primeirapagina-to.com.br/noticia.php?l=b211bd91d7193df336c3300a51e308c7
Ed. Nº 984, Palmas-TO, 19 a 25 de junho de 2011
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